Numa passagem do Novo Testamento, do alto de uma montanha o demônio aponta a extensão do Universo e oferece a Cristo: “Tudo isto será Teu se te prostrares diante de mim”. Em Árido Movie, temos uma curiosa variante dessa parábola. Jonas, filho desgarrado de Lázaro, volta ao interior de Pernambuco para o enterro do pai e é confrontado pela lógica das vendetas familiares: “Você tem a ver com isso, sim senhor. Tudo isso é seu, mesmo que não queira”, impõe-lhe a voz do matriarcado.
A aproximação bíblica é apenas um dos muitos “textos” que se entrelaçam nesse suculento banquete de idéias cinematográficas. Diametralmente oposta à secura do ambiente sertanejo, a fartura de sugestões temáticas transforma o filme de Lírio Ferreira em novo jorro de criatividade e competência no cinema brasileiro recente.
O excesso aqui é benéfico porque quase nada se perde na poeira do caminho. A água e a maconha funcionam como fios condutores que ligam Jonas, o “homem do tempo” na TV de São Paulo, às relações de poder de sua família nordestina, à fertilidade ocasional do sertão, à tragédia étnica dos índios, à apropriação do tema pela arte chique paulista e à piração dos seus três amigos pelas estradas do deserto e da caatinga. Surpreende que o roteiro, escrito a oito mãos, sustente os nexos de maneira ao mesmo tempo tão clara e sutil. Porque nada aqui é dado pronto ao espectador. É preciso minimamente somar, subtrair, deduzir – enfim, dar tratos à inteligência para montar a rede que se estende entre as personagens.
A água, mãe de toda prole, está quase ausente das vistas, mas obsessivamente presente no imaginário de todos. Ela sinaliza o lado concreto da aventura, os projetos de cada um, sejam eles de trabalho, de morte ou de amor.
O fumo, pai de todo de-lírio, é o que está quase sempre à mão, respondendo não só pelo desbunde de alguns, mas pela alucinação que parece permear toda essa estranha história de náufragos a seco.
O ambiente engole o homem, cada um a sua maneira. Jonas faz seu estágio no ventre da baleia da família. O impagável trio de doidões fuma o sertão inteiro. O índio Jurandir paga o preço de desafiar a ordem coronelista. A pesquisadora Soledad faz do Nordeste o seu parangolé virtual.
Não é de Árido Movie que se deve esperar ordem e método convencionais. Nem a relativa “certeza” de uma origem documental. Tudo é construção deliberada e afinação pelo humor. A linguagem e os sotaques são goma lúdica na boca dos atores. Nem mesmo a fotografia de Murilo Salles (também produtor do filme) comunga com a tradição da “imagem sertaneja” no cinema brasileiro: é plúmbea, lunar, descorada – e magnífica.
Como um fantasma, insinua-se aqui e ali a lembrança dos road movies dementes de Oliver Stone (Assassinos por Natureza e, especialmente, Reviravolta/U-Turn), onde conviviam o gênero e seu comentário simultâneo. A pegada surrealista sugere que vejamos o filme com olhos ao mesmo tempo fascinados e incrédulos. Pois tudo tem o seu oposto. Árido Movie nos diverte, intriga e empurra para a frente. É um filme químico. De reação imediata. E tomara que permanente.
P.S. Depois de Amarelo Manga, Cinema, Aspirinas e Urubus, Árido Movie e dos curtas de Kléber Mendonça Filho, alguém ainda duvida que o cinema brasileiro mais estimulante está sendo feito em Pernambuco?
# ÁRIDO MOVIE
Brasil, 2005
Direção: LÍRIO FERREIRA
Roteiro: HILTON LACERDA, LÍRIO FERREIRA, SÉRGIO OLIVEIRA, EDUARDO NUNES
Produção e fotografia: MURILO SALLES
Montagem: VÂNIA DEBS
Direção de arte: RENATA PINHEIRO
Música: OTTO, BERNA CEPPAS, KASSIN, PUPILO
Som direto: VALÉRIA FERRO
Edição de som: VIRGÍNIA FLORES
Elenco: GUILHERME WEBER, GIULIA GAM, SELTON MELLO, GUSTAVO FALCÃO, MARIANA LIMA. JOSÉ DUMONT, MATHEUS NACHTERGAELE, ARAMIS TRINDADE, JOSÉ CELSO MARTINEZ CORREA, LUIZ CARLOS VASCONCELOS, SUYANE MOREIRA, MARIA DE JESUS BACARELLI, MAGDALE ALVES, PAULO CÉSAR PERÉIO, RENATA SORRAH
Duração: 100 minutos
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