Críticas


MARJORIE PRIME

De: MICHAEL ALMEYREDA
Com: JOHN HAMM, GEENA DAVIS, TIM ROBBINS, LOIS SMITH
30.10.2017
Por Luiz Fernando Gallego
Um dos melhores filmes do Festival do Rio 2017 já pode ser visto no NOW.

Marjorie é uma senhora de 85 anos que ficou viúva há quinze mas conversa diariamente com Walter, seu marido - e ele aparenta ter uns 40 anos. Trata-se de um programa holográfico de Inteligência Artificial que tem dados sobre o falecido para mimetizá-lo e que acumula novos dados com as conversas que mantém com Marjorie. 'Ele' também é instruído por Jon, seu genro. Marjorie está numa fase oscilante de Alzheimer e tanto pode ter dias em que oferece novas lembranças para este ‘Walter’ quarentão, como pode receber lembranças de coisas que ela já esqueceu mas que este ‘Walter’ tem arquivadas. Ela escolheu essa aparência do Walter aos 40, mesmo que na realidade ele fosse mais velho do que ela.

A elaboração das perdas já mereceu um famoso ensaio de Freud sobre o processo de luto, ainda que nem sempre plenamente satisfatório: como, de fato, convivemos com a ausência definitiva de um ente muito amado? Como sobrevivemos às perdas mais significativas? E esta não é a única questão levantada pelo roteiro de Jordan Harrison (autor da peça original e finalista do Pulitzer 2015) em parceria com o diretor Michael Almeyreda: Marjorie, além de perda(s) objetiva(s) também está se perdendo pela doença que destrói sua memória.

O riquíssimo texto da peça original, muito bem adaptada no roteiro, tem várias outras camadas de leitura: somos feitos da mesma matéria dos sonhos, já dizia Shakespeare, mas também da relação intersubjetiva com os outros. Mesmo que ‘Walter’ não seja um humano, ele é formado pelas lembranças de Marjorie e de Jon; assim como a Marjorie do presente é atualizada pelas lembranças dela mesma, ainda que perdidas, mas recuperadas por ‘Walter’ - que por sua vez é formado pelas memórias dela, de Jon e do que mais a I.A. possa encontrar sobre quem o Walter-humano foi... Na internet, claro.

A dificuldade de lidar com as perdas e elaborar o luto é exemplificada também por outras situações mencionadas, como o fato da família composta por Marjorie, Walter e Tess (a filha deles) ter tido dois cãezinhos com o mesmo nome, Toni e Toni-2 (Toni-two), como se o segundo fosse a continuidade do primeiro que morrera. Ou seria "o mesmo" em uma vivência que negasse a perda do anterior? O ‘Walter’ holográfico seria como um Toni-two, um “Walter-two”? Seria Walter too?

Para problematizar mais as relações dos humanos com a tecnologia que, no futuro próximo em que se passa a história, seria capaz de, digamos, refletir - ou melhor, como que “replicar” humanos (por mimese virtual, pois não se trata de clonagem ...ainda) o filme traz diversas alusões e referências variadas que podem chegar à letra de "I shall be released”, de Bob Dylan, que abre com o verso They say everything can be replaced. E ‘tudo” pode mesmo ser substituído?

O enredo nem pára por aqui, mas não vamos cometer spoilers sem avisar. Trata-se, sem dúvida, de “teatro filmado” - e da melhor qualidade, quase um “peça de câmara” que pode lembrar um pouco (especialmente no final) alguns recursos visuais utilizados por Alain Resnais em Providence ou em Medos privados em lugares públicos.

Como curiosidade, Almeyreda rodou o filme em apenas 13 dias (!), aproveitando a mesma atriz que criou a personagem Marjorie nos palcos, Lois Smith - e que está absolutamente excepcional. O texto deve ter encantado os atores Jon Hamm (do seriado Mad Men) e Tim Robbins (de Um Sonho de Liberdade), já que os dois são uns dos co-produtores, além de interpretarem os dois principais papéis masculinos, o de ‘Walter', e o de Jon, respectivamente. Em outros momentos Jon Hamm é Walter real numa memória (de quem?). Além deles dois, é uma satisfação rever Geena Davis mostrando que continua a ser excelente atriz, apesar do botox.

O desenho de produção de Javiera Varas, a cenografia (quase sempre interiores, claro) de Roxane Kratt, a fotografia sensível no uso das cores por Sean Price Williams assim como a música de Mica Levi (indicada ao Oscar por Jackie) são elementos que contribuem para o resultado emocionante que o filme alcança. Mas também caberia citar outras peças musicais utilizadas na trilha sonora, diegética ou não, de Poulenc a Mozart.

Também não há como deixar de lembrar os jardins de Ano Passado em Marienbad (novamente Resnais, já que é um filme que trata de memórias perdidas, arquivadas ou falseadas) em relação a uma pintura vista em uma cena passada num museu.

ATENÇÃO: SPOILER Só leia daqui em diante se já viu o filme.

O enredo ganha em complexidade quando, em algum momento, percebemos que Marjorie aparece em forma holográfica de Inteligência Artificial para sua filha, a mesma que se incomodava tanto ao ver a mãe, idosa, conversando com alguma coisa que parecia seu pai, na faixa dos 40 de idade. Já não se trata do uso utilitário da I.A. para acompanhar uma pessoa em processo de Alzheimer! Mais dramática ainda, a situação similar de Jon, quando recorre a um holograma de sua esposa: mais uma vez Orfeu tenta reviver Eurídice, mas com que chance de sucesso?

Mencionei acima o famoso trabalho de Freud sobre o luto: de uma certa forma, ele mesmo apontou a impossibilidade de vencermos totalmente a perda de um “pedaço de mim” quando, numa carta, falou sobre a dor de perder uma querida filha, Sophie: "A dor aguda que sentimos por uma perda como esta irá seguir seu curso natural, mas também sabemos que permaneceremos inconsoláveis, e nunca encontraremos um substituto. Não importa o que vier a tomar o lugar do que perdemos, e mesmo que possa preencher o espaço vago de modo completo, ainda assim será algo distinto. E assim é como deveria ser. É a única maneira que temos de perpetuar um amor que não queremos abandonar."

Por fim, a emocionante cena final mostra a possibilidade das “memórias” holográficas sobreviverem aos humanos, lamentando a ausência daquele que havia sido o mais entusiasta do recurso: talvez não tenha havido ninguém para “revivê-lo” de forma a acompanhar os outros “fantasmas”?

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Outros comentários
    4630
  • Elizabeth Castanheira
    30.10.2017 às 04:39

    Excelente critica. Gostei muito da forma sensível como tratou o tema. Me deixou com muita curiosidade e vontade de ver o filme, que aborda a IA, o Alzheimer, as memórias, a saudade e a perda de uma forma que parece primorosa pelas palavras de Luiz Fernando. Vou assistir no Now.
    • 4631
    • Luiz Fernando Gallego
      30.10.2017 às 05:28

      Obrigado, Elizabeth. Espero que goste do filme. Pena que não será mais visto em telas de cinema.
    4633
  • Juliana
    30.10.2017 às 15:48

    Uau!!!! Que critica deliciosa de ler!!!!! Louca pra assistir....