Quando J.J.Abrams e os roteiristas Lawrence Kasdan e Michael Arndt reiniciaram a franquia Star Wars em 2015 com O Despertar da Força, a aventura era simpática, divertida, mas, convenhamos, o enredo corria poucos riscos. Por trás dos números de mágica de Abrams, havia a sensação de quase um remake de Star Wars - Uma Nova Esperança, com os novos análogos da primeira Ordem e da Rebelião enfrentando novamente uma Estrela da Morte.
Os fãs abraçaram a abordagem por nostalgia e por veneração. Nada mais.
Felizmente, Rian Johnson, o roteirista e diretor de Star Wars VIII - Os Últimos Jedi dá de ombros pra veneração. Não que ele, desgoste da mitologia. Há algumas cenas em que o diretor demonstra uma ternura, que talvez nunca tenhamos visto nos sete filmes anteriores da saga ou no spin-off, Rogue One.
Acontece que Johnson invade a sala de brinquedos e comporta-se como uma criança selvagem. Ele lança bonecos pro alto, desmonta as naves, destrói as torres de Lego e reconstrói novas edificações mutantes.
Esse é o espírito de Os Ultimos Jedi. Johnson mergulha no universo com um entusiasmo sacana, e o filme, no fundo, vira um braço de força sobre a eterna luta do artista em Hollywood. Entre a sensibilidade artística de um diretor e uma indústria, detentora de uma visão rigorosa de como quer que os filmes sejam feitos. Um estúdio que molda as visões de seus diretores para apoiar uma estética corporativa unificada - um processo que mastigou e cuspiu Colin Trevorrow, Gareth Edwards, Phil Lord e Christopher Miller.
Pensou diferente, e você tá fora.
Agora, olha o curioso: Rian Johnson pensa diferente. E o modo como ele dribla a máquina, é muito interessante. Seu filme respira, quase fisicamente, nesse hiato entre a dificuldade de ser: pôr em cena e/ ou obedecer as regras impostas. Se não, vejamos: Poe Dameron (Oscar Issac), o primeiro dos novos heróis que aparece em cena, é um piloto, que desacata os superiores. Vive as turras com a Comandante Leia Organa (Carrie Fisher). Coloca-se a frente da frota de destróieres da Primeira Ordem sozinho e provoca o general Hux, torcendo as palavras com a mesma habilidade que pilota um caça e dá cavalos de pau nas nuvens.
Luke Skywalker (Mark Hamill) segue a mesma trilha. Um dia, foi um guerreiro destemido como Poe, o tempo passou e ele cansou. Virou o velho ermitão cínico. Não se sensibiliza com causa nenhuma. Quando Rey (Daisy Ridley) lhe entrega o sabre de luz, o cavaleiro jedi arremessa a relíquia no mato. Luke não aceita mais ordens, nem quer se aliar a esse ou àquele grupo.
Enquanto isso, Finn (John Boyega) acorda na nave dos rebeldes, já pronto para procurar Rey e lutar se for preciso, só não percebe um detalhe: está completamente nu andando pela nave. Temos ainda a adição de dois personagens adoráveis e igualmente excêntricos, o mercenário DJ, vivido por Benício Del Toro, um malandro decodificador de senhas que luta sempre do lado de quem oferece mais vantagens, e a meiga Rose Tico (Kelly Marie Tran), a simplória fã dos feitos extraordinários de Finn e Rey. Rose vive a ilusão de destruir a cidade-cassino onde os ricos vendedores de armas se divertem. Ela acha que eles não passam de uma escória por negociar armas com a Primeira ordem. Então DJ dá um choque de realidade na menina, quando aponta, que essa mesma escória, também vende armas para Resistência.
Esse dilema, esse atrito entre buscar a independência ou se vender, tentando dentro do sistema manter uma certa pureza, reverbera em cada fotograma de Os Últimos Jedi.
Multiplica-se inclusive, na cabeça de Rey, a heroína. Num dos grandes momentos do filme, Rey entra numa caverna e sua imagem se multiplica. Ela grita, tenta alcançar o fim deste encadeamento de Reys, e elas continuam aumentando. Finalmente, no momento em que ela encontra o fim, uma sombra se aproxima e Rey fica feliz, assim como os espectadores também, porque acreditam que algo finalmente vai ser revelado. E o que seria esse segredo? Cada um deve buscar sua própria leitura do que esse vulto representa.
Enfim, todos são meio insolentes, inclusive Kylo Ren (Adam Driver), ao se recusar a tirar a máscara na frente do Lorde Supremo Snooke (Andy Serkys). O mestre dos vilões, irritado, chama o pupilo de criança mimada de capacete e Kylo sai da sala possesso.
O trecho acaba sendo um alívio cômico para o que se desenvolve dentro de Kylo Ren, sem dúvida, o personagem mais trágico da nova saga. Ele é odioso, recalcado, e até mesmo infantil em sua crueldade, sua resignação, contudo, é dolorida e consegue ser profundamente tocante.
Vem daí, aliás, a tortuosidade do filme, que se espalha em torno do triângulo psicológico envolvendo Kylo, Rey e Luke. A história desses três está vinculada e compartilhada por um mistério. Há outra revelação importante aqui. Óbvio não vou dar o spoiler, mas o inquietante é que não se trata de algo imediatamente identificável, como por exemplo, vimos em O Império Contra-Ataca.
Mas antes disso, o espectador é brindado com uma abundância de duelos com espadas de luz, rivalidades e batalhas aéreas.
O ritmo é espantoso, e a tarimba de Johnson advém de nunca deixar que o público se perca em meio as viagens entre as estrelas ou a profusão de personagens.
Verdade, não temos mais Carrie Fisher, uma atriz eloqüente para viver Leia Organa em outros filmes. A atriz, como todo mundo sabe, morreu no final do ano passado. Mas em cada cena que ela aparece, essa lembrança torna sua presença mais intensa. Carrie é a alma da Resistência.
A beleza do filme, contudo, reside no controle e orquestração de Johnson. Um sujeito que organiza cada etapa, do roteiro a filmagem, da edição, a finalização, imprimindo sua filosofia: em cada detalhe sente-se a personalidade do diretor, nos diálogos, nas tiradas, no desenvolvimento dos personagens.
Um defeito que foi sendo ampliado nos filmes de George Lucas: a questão dos personagens secundários. Lucas sempre foi muito bom em criar novos vilões, extraterrestres e derivados, mas as novas estrelas nem sempre tinham uma função forte. Não havia um desenho de desenvolvimento. Vide a profundidade pífia de personagens como Boba Feet, Darth Maul, ou o General Grievous. Lucas aumentava seu universo de bonecos pensando em vender os brinquedos.
Johnson criou um novo grupo, que obviamente também serão vendidos como brinquedos. Mas há uma sensível diferença. Cada um dos novos tipos apresentados, tem uma razão, uma motivação orgânica para estar em cena. Sejam os Porgs, as Raposas de Cristal ou os Fathiers, cavalos espaciais de orelhas cumpridas.
Johnson nunca perde o fio da meada: o corpo físico briga com o psicológico, e no final, a questão de quem triunfa, é relativa.
Quem bom que temos um filme onde o conforto é aparente e onde as fronteiras do bem e do mal são claras apenas para os que preferem se iludir. A arte de Johnson, como ele já tinha nos mostrado em Looper - Assassinos do Futuro, é empolgante por que não se fecha em raciocínio simples. É a arte da inquietude e da tormenta humana.