Apaixonados por cinema desde a nossa infância (nas décadas de 1940 e 1960, respectivamente), meu pai e eu nos lançamos com entusiasmo à tarefa de verter para o português A Linguagem Secreta do Cinema. O texto desse livro serviu como matéria perfeita para a celebração do nosso extremado amor fílmico. Contundente e afetuosa, crítica e bem-humorada, filosófica e anedótica, poética, autobiográfica e ensaística, a obra de Jean-Claude Carrière é uma das mais encantadoras e perspicazes reflexões sobre a linguagem cinematográfica, sua autonomia e interdependência, sua inserção entre as artes e as culturas, sua interação no mundo cotidiano, seus modos de expor e de ocultar. O que mais nos alegrou, à medida que avançávamos em nosso prazeroso trabalho, foi a constatação de como o cinema pode ser analisado sob diversos pontos de vista, descartando-se a rigidez metodológica e a ortodoxia ideológica, recusando-se toda e qualquer redução estilística, fazendo-se frente às onipresentes tentativas de homogeneização, de normatização, de rendição às fórmulas e aos clichês.
As fantásticas parcerias entre Carrière e cineastas como Luis Buñuel (a mais fundamental de todas, sem sombra de dúvida), Milos Forman, Volker Schlöndorff, Andrzej Wajda, Peter Brook, entre outras, lembrava-nos, a todo momento, dos filmes que víramos juntos ou separados, em memoráveis e disputadas maratonas retrospectivas na Cinemateca do MAM, nas charmosas e discretas tardes no Museu de Imagem e do Som, em inúmeros cineclubes e festivais, em casas de amigos, sessões matinais para a imprensa e intermináveis noites de boêmia cinematográfica. Ao longo das idas e vindas do processo de tradução, íamos nos dando conta de como a nossa relação de pai e filho havia sido marcada, acompanhada, comentada, iluminada e enriquecida pelas imagens cinematográficas. Era como se o intenso interesse em comum pela chamada “sétima arte” nos tivesse aproximado ainda mais, tornando-nos parceiros, companheiros de viagem, prontos a compartilhar sentimentos e idéias que os filmes nos despertavam. Pois para o autor de A Linguagem Secreta do Cinema, os filmes não existem só ali, na tela, no instante de sua projeção. Eles se mesclam às nossas vidas, influem na nossa maneira de ver o mundo, consolidam afetos, estreitam laços, tecem cumplicidades.
No princípio, era o pai levando o filho pela mão, guiando o seu olhar, apresentando com júbilo os seus fotogramas mais preciosos: os samurais de Kurosawa, o desempregado de Ladrões de Bicicleta, o adorável vagabundo de Charles Chaplin, o paroxismo cômico de Jerry Lewis, a leveza mágica dos musicais, a misteriosa e fascinante odisséia de 2001; e, depois, um pouco mais adiante: o choque político-estético de Encouraçado Potemkin, a inquietação visionária (tão díspar!) de Welles, Hitchcock, Glauber, Godard, a poesia melancólica de Fellini, o mundo suntuoso de Visconti, as ardentes alegorias de Pasolini, a subversão absoluta de formas e valores de Buñuel.
A partir da adolescência, chegou o momento do filho de, vez por outra, chamar a atenção do pai sobre algum filme visto, algum ator, algum livro, algum detalhe, alguma questão ou algum ângulo, estabelecendo, desse modo, um diálogo que desde então nunca mais se interrompeu.
Dos dribles na censura etária da década de 1970 – que incluíam a procura de salas de exibição menos severas com a comprovação da idade e a maquiagem em carteirinhas escolares – até a colaboração profissional nos anos 1980-90, a relação de pai e filho sempre teve, em algum ponto, a mediação das imagens cinematográficas. Ao unirmos esforços para a tradução de A Linguagem Secreta do Cinema, esse livro único, inclassificável, cristalino, delicioso e denso, nós dois, Fernando e Benjamin, chegamos um pouco mais perto de compreendermos toda a dimensão dessa amorosa trajetória de cinema e vida.