O título acima, numa versão para o inglês, poderia servir de slogan para o negócio dos protagonistas de Bolívia: História de uma Crise. “Your Vote, Our Business”, ou melhor “Your Choice, Our Business”, cairia bem como letreiro do suntuoso escritório de James Carville, a matriz americana do Duda Mendonça, e seus asseclas.
Carville é uma espécie de astro pop da consultoria política internacional. Seu site, www.carville.info, dá a dimensão do estrelato logo na página inicial, em que uma animação anuncia “o homem que planejou as mais dramáticas vitórias políticas da nossa geração”. Nascido na conservadora cidade de Carville, Louisiana, James chegou ao pódio do marketing ao pilotar a campanha de Clinton à Presidência. Daí em diante, tornou-se figura mundial, ocupando espaço televisivo num programa jornalístico da CNN.
A nova ordem global projetou Carville e suas técnicas para o mundo. Mais de vinte países, incluindo o Brasil, onde Carville prestou serviços a Fernando Henrique Cardoso e Celso Pitta, já contrataram a peso de ouro sua prestigiada consultoria. Bolívia: História de uma Crise é o relato de uma dessas intervenções de marketing político.
Our Brand is Crisis diz mais sobre o que é o documentário da estreante Rachel Boynton do que sua didática tradução para o português. Ao pé da letra seria “Crise é a nossa marca registrada”; no contexto do filme, no entanto, a melhor interpretação seria “Crise é o nosso bordão”. Afinal, esta é a principal argumentação dos marqueteiros de Carville para que o candidato Gonzalo Sanchez de Lozada, o “Goni”, suba nas pesquisas. “Crise, crise e crise. É nisso que temos que bater”, insistem os consultores.
A tarefa não é das mais fáceis. Filho de um exilado político, Lozada foi criado em Washington e retornou ao país natal pelo viés da política, tornando-se Presidente da Bolívia num período, e com um discurso bem próximo ao de Collor no Brasil. A promessa de um futuro globalizado, com a Bolívia integrada à nova ordem mundial, seduziu o bolso da oligarquia local e os corações miseráveis de um povo isolado pela pobreza.
O desastre do mandato privatista de Lozada resultou num fracasso tremendo, com altos índices de desemprego e um retorno ao exílio. Anos depois, “Goni” retorna à Bolívia com a pretensão de voltar ao poder. Como adversários, encontra o populista, e acusado de corrupção, Prefeito de Cochabamba, Manfredo Reyes, e o líder nacionalista Evo Morales. Os obstáculos na corrida presidencial são imensos: dois adversários fortes, um passado condenável e um país desesperançado. Pior: Lozada tem um sotaque terrível de turista americano e uma arrogância atávica.
Bolívia: História de uma Crise segue passo a passo os 100 dias que antecedem a eleição e os primeiros meses de “Goni” no poder. Como uma tropa de choque, os homens de Carville desembarcam no país latino-americano com suas estratégias, números e técnicas de comunicação. O documentário dá ênfase ao trabalho dos grupos de pesquisa ditos focais. Também conhecidos como grupos de pesquisa qualitativa, eles se reúnem em salas com um falso espelho. São grupos limitados, em geral no máximo dez pessoas, separadas por classe social, localidade, idade e sexo, que discutem durante algumas horas temas pré-selecionados. Do outro lado do falso espelho, marqueteiros acompanham silenciosamente as manifestações e confirmam ou revêem suas teses.
É assim que eles afinam o discurso de” Goni”, comprovando que é preciso explorar a crise como tema, atacar a corrupção e propor o emprego como solução. Nenhum detalhe escapa. Antes do grupo de Carville, o slogan da campanha era “La solución”, um slogan arrogante como o candidato. Depois do marketing, o novo slogan é “Sí, se puede”, que sugere esperança e colaboração. O trabalho de imagem minucioso leva Goni a superar a barreira de 16 pontos na pesquisa e vencer a eleição por dois pontos percentuais à frente de seus concorrentes, que terminaram praticamente empatados. É bem verdade que se a eleição fosse em dois turnos o resultado poderia ser bem diferente. Mas aí não seria Bolívia: História de uma Crise, e sim Entreatos.
O documentário acompanha com apuro todos os caminhos da estratégia de comunicação. Das avaliações frias, absolutamente pragmáticas, voltadas exclusivamente para o sucesso eleitoral, aos comentários internos dos marqueteiros sobre as peculiaridades do candidato, como seus maus antecedentes políticos e sua contumaz arrogância. O cinismo e a frieza que permeiam tais momentos são o grande trunfo para que se entenda o clímax trágico para o povo boliviano.
Em seguida ao êxito eleitoral, os homens de Carville esbarram na complexidade sócio-político-econômica da Bolívia. Sem a tábua eleitoral, os marqueteiros são confrontados com um governo sem maioria, com forte resistência popular e totalmente distanciado da realidade paupérrima dos bolivianos. Há uma seqüência antológica em que Jeremy Rosner, Coordenador Estratégico da campanha, conversa com a tradutora de um dos grupos focais. Ela tenta explicar como uma quantia considerada irrisória por eles de taxação de impostos representa um golpe mortal para a economia popular. Nesse momento, a visão idealizada dos estrategistas, calcada sempre no modelo americano, revela-se um primor de alienação e desconhecimento dos contextos sociais específicos.
Numa edição corajosa, a cineasta Rachel Boynton explora as contradições entre a lógica dos frios escritórios norte-americanos e a tensão das ruas bolivianas. Enquanto os estrategistas se desdobram tentando explicar os atos de Lozada e reconhecer as limitações do marketing, Rachel seleciona imagens da violência e de mortes sem o filtro da propaganda. Foi até hoje a melhor constatação do que, um dia, me disse um profissional do marketing político: “política é algo que se faz entre duas eleições”. Ou seja, por mais que as campanhas se tornem um jogo de estratégia de comunicação, a história resiste e se impõe com sua própria força.
Por isso é bom tomar cuidados técnicos. A página de James Carville na internet, por exemplo, omite, entre seus clientes, Gonzalo Sanchez de Lozada.
BOLÍVIA: HISTÓRIA DE UMA CRISE (OUR BRAND IS CRISIS)
EUA, 2005
Direção e produção: RACHEL BOYNTON
Fotografia: MICHAEL ANDERSON, CHRISTINE BURRILL, TOM HURWITZ, JERRY RISIUS
Som: SERGIO CLARO, RACHEL BOYNTON
Montagem: RACHEL BOYNTON, JENNIFER L. ROBINSON
Música: MARCELO ZARVOS
Duração: 87 minutos