Críticas


O INSULTO

De: ZIAD DOUEIRI
Com: ADEL KARAN, KAMEL EL BASHA, CAMILLE SALAMEH, DIAMAND BOU ABBOUD
06.02.2018
Por Luiz Fernando Gallego
Aborda a raramente levantada cisão entre demais árabes e palestinos. Só por isto já merece atenção redobrada.

Por trás de uma desavença - que, a princípio, parece ter sido causada por um cano de escoamento de água irregular na varanda de um apartamento - há mais ressentimentos do que se poderia supor. Águas passadas ainda movem moinhos dentro das cabeças de um libanês cristão e de um palestino refugiado que trabalha em obras urbanas, exatamente para corrigir pequenas irregularidades em construções fora de padrões, o que parece ocorrer de modo desordenado em bairros da cidade.

É evidente que o filme trata de questões políticas muito mais graves, mas que podem ser exemplificadas no microcosmo enfocado, e a partir do qual o conflito vai ganhar proporções infinitamente maiores, chegando aos pontos que o diretor e co-roteirista Ziad Doueiri (roteiro em parceria com Jouelle Touma) quer abordar sem repetir estereótipos já por demais conhecidos. Talvez seja a primeira vez que um filme de grande projeção aborde a mais do que complexa questão palestina sem se limitar ao conflito com Israel, mas apontando o dedo para a raramente levantada cisão entre demais árabes e palestinos. Só por isto o filme já merece atenção redobrada.

Por outro lado, vale mencionar que o conflito que se estabelece entre o libanês Tony Hanna (interpretado por Adel Karan) e o palestino Yasser Abdallah Salameh (interpretado por Kamel El Basha, melhor ator no Festival de Veneza 2017) também serve para caracterizar uma circunstância emocional que a psicanálise descreve como “fúria narcísica”. Para não entrar em descrições teóricas, repito o exemplo que o próprio psicanalista Heinz Kohut - que foi quem cunhou o termo - utilizou: o Capitão Ahab, imortal criação de Herman Melville em seu livro “Moby Dick”. Ele quer destruir a baleia branca que havia provocado o naufrágio que lhe custou uma perna. Para ele só havia uma meta na vida: destruir a baleia, mesmo que para tal, ele morresse junto - como de fato acontece no desfecho do romance. Mas isto não importa: a pessoa, coisa, entidade, ideário político, grupo étnico, país, time adversário - seja o que for - que foi identificado como obstáculo a nossos interesses e/ou necessidades, e portanto, experimentado como uma decepção gravíssima (por não estar a serviço do que eram nossas expectativas), este objeto de frustração é vivenciado como tendo causado uma ferida irreparável no sentimento de bem estar com a gente mesmo.

E para tentar restaurar, cicatrizar esta chaga só se vê uma – suposta – solução: a destruição do causador de tal ferida em nosso amor-próprio. Não se trata necessariamente de uma explosão furiosa, como se poderia supor: pode até ser, mas também pode ser a alimentação de estratégias para atingir uma vingança que se coma fria.

E o filme mostra que as reações, inicialmente de Tony, mas também de Yasser, caracterizam algo de “fúria narcísica”: o narcisismo que serve à autoestima sofreu uma ferida tão profundamente sentida que apenas a destruição de quem causou a ferida pode satisfazer quem se sentiu ofendido - mesmo que a pessoa que quer destruir o outro se dane junto.

Logo percebemos a insensatez (para quem olha de fora) das atitudes dos dois (quase) irmãos em etnia. Para eles, não pode ser diferente: fazem o que fazem “justificados” por seus motivos políticos (uma cortina de fumaça?), por suas histórias pessoais (mais do que uma desculpa) e por suas feridas narcísicas transformadas em fúria narcísica.

O Insulto também não deixa de seguir a estrutura de “filme de tribunal” a partir de determinado ponto e pode ser que alguns espectadores achem alguns desenvolvimentos do enredo “forçados” mais pela necessidade de prosseguir com a contenda e dimensionar o que até certo ponto não passaria de uma briga trivial (ainda que muito furiosa) para se transformar numa “questão nacional” - ainda que, neste caso, ficcional (e não foi por nada que uma frase, antes do início do filme, foi colocada no sentido de eximir o governo libanês das situações mostradas e opiniões expressas pelo filme).

No entanto, mesmo que se possa considerar que, eventualmente, as necessidades do roteiro se sobrepuseram com menor ou maior habilidade ao convencimento verossímil, a força do que o diretor quer demonstrar não chega a se perder em absoluto. Há coincidências demais entre advogados e no histórico dos personagens principais, mas é sobre isto mesmo que Ziad Doueiri que falar. São muitas coisas, questões e aspectos que quase atravancam o filme, mas a necessidade de falar sobre uma situação tão complexa justifica qualquer senão de menor monta que poderia ser levantado.

Doueiri não foge de polêmicas: seu filme anterior, O Atentado, de 2012 lidava com outra explosiva (literalmente) questão ao tratar de uma mulher-bomba palestina casada com um importante cirurgião, também palestino, domiciliado - e muito bem considerado até então - em Tel-Aviv. O filme só foi exibido em um país árabe, Marrocos, durante um festival em que foi até mesmo premiado, mas permanece inédito no mundo árabe sob a alegação de que foi rodado em Israel. Vale a pena tentar conhecer também esta outra obra de Doueiri. E torcer para que o sueco The Quest não arrebate o prêmio Oscar de O Insulto como melhor filme em língua não inglesa dentre os indicados desta temporada.

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