Críticas


UMA DECEPÇÃO CHAMADA LADY BIRD

16.02.2018
Por Maria Caú
Um filme pasteurizado que corresponde ao padrão do que é considerado “feminino”, com roteiro fraco, diálogos requentados e direção pouco inspirada

Quando "Lady Bird" foi anunciado, o filme suscitou imediata expectativa por parte da crítica: a programação visual era bonita, o elenco bem escolhido e a sinopse, apesar de não original, parecia capaz de render um belo filme nas mãos de Greta Gerwig, atriz e roteirista (ao lado de Noah Baumbach) do queridinho cult Frances Ha, que também trata de uma jovem que luta para traçar o próprio destino. No entanto, a boa recepção do longa parece desviar os olhos de seus muitos problemas estruturais.

A obra, que em português ganhou o subtítulo de É hora de voar, que mais parece uma tentativa pouco criativa de resumir a trama, tem por foco o cotidiano de Christine, que se autointitula “Lady Bird”, uma adolescente que vive os últimos meses do segundo grau, antes da entrada na legitimação do mundo adulto e da suposta libertação da universidade.

Se o filme ganha a simpatia do espectador com uma primeira sequência bastante boa, trata-se de um momento inspirado de um roteiro fraquíssimo, que mais parece uma colagem dos clichês próprios aos filmes de formação que têm por foco o fim da adolescência. A sensação é de que já vimos isso antes, e já vimos de forma mais bem acabada. Numa reunião com amigos críticos, chegamos em apenas 5 minutos a mais de dez títulos que executam muito melhor essa mesma linha narrativa básica, dos quais destaco Califórnia, por ser um longa bastante recente (2015), brasileiro, também semiautobiográfico e dirigido por uma mulher (Marina Person).

O roteiro, também assinado pela diretora e centrado nas experiências bastante mundanas da protagonista com familiares e colegas de colégio, é episódico e fragmentário, o que não seria um problema, houvesse alguma coesão narrativa ou desenvolvimento coerente dos personagens. Em vez disso, o que tem lugar é um encadeamento acelerado de acontecimentos (em geral, desinteressantes) recheados de diálogos requentados: a conversa entre amigas sobre sexo e orgasmo; os interesses amorosos e as eventuais decepções; a insegurança em relação ao grupo dos alunos populares; os problemas de autoestima. Todas essas situações dramáticas, apesar de não serem novidade alguma, poderiam ser melhor trabalhadas, mas elas se sucedem em tal ritmo que a sensação é de estarmos diante de uma minissérie condensada para o tempo de um longa-metragem.

A cadência descompensada não parece respeitar nem o tempo emocional dos personagens (crucial numa narrativa com poucos acontecimentos marcantes e – presumivelmente – mais transformações internas) nem o processo necessário para suscitar o engajamento do espectador com os dramas da protagonista. Esses dramas, aliás, se resumem a um conjunto dos chamados white people problems, o que talvez não fosse completamente decepcionante, caso a trama conseguisse transmitir com visceralidade o peso dessas questões para uma jovem ou problematizasse seu cunho individual(ista) e egocêntrico. Ao contrário, a protagonista emerge como uma menina mimada, fútil, reclamona, autocentrada e francamente entediante, tornando difícil a identificação numa narrativa que claramente tenciona construir esse laço.

Em realidade, o filme parece postular que Christine é uma adolescente comum, quase afirmando que suas muitas falhas de caráter seriam apenas traço da imaturidade típica dos 17 anos. Assim, se a moça é incapaz de reconhecer os esforços da mãe, que trabalha longas horas sem descanso para pagar-lhe uma boa escola, ou a depressão crônica do pai; se ataca o irmão num surto racista; se trata a melhor amiga como uma peça descartável, esses comportamentos não são postos em perspectiva ou debatidos de forma aprofundada, o que prejudica o investimento emocional do público. De maneira similar, também as viradas do arco dramático que ela segue parecem abruptas e injustificadas, uma vez que não há quaisquer sequências que expliquem satisfatoriamente a transformação da adolescente.

A falta de tridimensionalidade de Christine é patente: além da vontade de deixar Sacramento ou de um vago talento para as artes dramáticas, prontamente abandonado em prol da companhia do grupo mais popular do colégio, a jovem não nutre quaisquer interesses ou desejos palpáveis. Na pele da personagem-título, a atuação da talentosa Saoirse Ronan é prejudicada por esses fatores.

Se com o filme, Gerwig conseguiu o incrível feito de ser a quinta mulher em noventa anos a ser indicada ao Oscar de Melhor Direção, ela escorrega bastante no trabalho tanto com os atores (por conta do ritmo por demais entrecortado e acelerado das sequências), quanto na escolha pouco inventiva dos planos. Também o uso da igreja como cenário-chave para o desfecho parece dar ao filme uma leitura religiosa e moralista que não combina com os demais elementos.

Apesar disso, o longa conserva algum rigor estético, especialmente nas tomadas que mostram os personagens inseridos no cenário das ruas e dos pontos turísticos de Sacramento, que a diretora parece conhecer como a palma de sua mão. Outro ponto positivo é a atuação de Laurie Metcalf, indicada ao Oscar, que rouba a cena no papel da mãe a ponto de desviar o interesse do público para os seus dramas (esses sim, muito mais interessantes). Há ainda alguns breves momentos de sensibilidade que se destacam, como o confronto entre a personagem central e um ex-interesse amoroso.

"Lady Bird" é aquele filme que todas nós adoraríamos amar. Um filme dirigido, escrito e protagonizado por mulheres que conseguiu quebrar barreiras – e eis aí a sua importância. Mas, num ano com excelentes obras assinadas por mulheres, com "Mudbound", de Dee Rees, é impossível não questionar porque este título foi alçado ao rol de premiáveis. Oscar e afins não levam em conta merecimento, sabemos, como provam os muitos homens medíocres que já foram indicados no lugar de mulheres brilhantes, apagadas ou sub-reconhecidas.

Talvez por ser um filme pasteurizado que corresponde ao padrão do que é considerado “feminino”, ele tenha sido tão bem aceito. Ao fim e ao cabo, o gosto é de mais do mesmo sabor de balinha tutti-frutti.

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Outros comentários
    4699
  • Conrado
    20.02.2018 às 09:03

    O que é um filme pasteurizado?
    • 4727
    • Luiz Fernando Gallego
      06.03.2018 às 17:46

      Maria Caú respondeu: "Com pasteurizado, quis dizer que o filme é pouco original ou imaginativo, segue uma cartilha engessada em sua construção, enfim, não traz nada de novo".
    4728
  • Conrado
    07.03.2018 às 09:37

    Obrigado, Luiz. Nunca tinha ouvido essa expressão fora do tema "leite" ou "queijos". rs Abraço.