Críticas


IMAGENS DO ESTADO NOVO – 1937-45

De: EDUARDO ESCOREL
22.03.2018
Por Dinara Guimarães
A construção do estado-nação como uma estratégia discursiva

No discurso há sempre um não-dito, um além envolvendo muitos outros sentidos. A verdade é para quem acredita. No documentário de Eduardo Escorel, Imagens do Estado Novo -1937-45”, essa dimensão do não-dito é marcada pela narração do próprio diretor.

Ao utilizar-se das imagens produzidas para os cine-jornais pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que além de exercer a censura sobre todos os meios de comunicação, investia maciçamente na propaganda do regime de Getúlio Vargas para reforçar sua imagem de protetor da classe trabalhadora, Escorel pontua contradições e ambiguidades, o que permite evidenciar a onipotência do Presidente e a fragilidade do poder simbólico que o sustenta, e assim, congelar o imaginário do povo que possibilitou o presidente permanecer como referência enigmática, materializada, sobretudo, por meio de sua voz pelo rádio ou ouvida nos estádios: voz que se ouve e se ama por encerrar a promessa de justiça, de felicidade, de bem-estar. Assim sendo, a maioria do povo, que jamais via - e apenas escutava Getúlio - vivia da promessa de muitas leis promulgadas em benefício do trabalhador, na medida em que muitas delas não tenham sido efetivadas, motivo pelo qual seus discursos ficavam reduzidos à intenção.

Toda a narrativa de Escorel fica entre mostrar e denegar os fatos, o que é feito por meio da edição de imagens de arquivo produzidas na construção do mito de suplementação do real, ou seja, a ideologia. Em uma feliz edição, ele dá ao Estado Novo a significação de um movimento ditatorial regrado que se expressa por uma estratégia discursiva, cujos efeitos formam parte da construção do discurso do “Bom Senso Político” determinado por uma lógica na organização das palavras, no qual o prazer fica excluído, oposto ao discurso cuja lógica é o “excesso”, e que assim estabelece o “telos” do varguismo, desde que ordena uma união para a realização do ideal supremo de que todos marchem unidos, em ascensão prodigiosa, heroica e vibrante, pela prosperidade e grandeza do Brasil. Prevalece o conjunto dos trabalhadores e sua organização, as sociedades, os sindicatos. Discursa Vargas: “Um país não é apenas um conglomerado de indivíduos dentro de um território, mas principalmente a unidade da raça, a unidade da língua, a unidade do pensamento nacional”.

Durante as quase quatro horas de projeção do filme, percebe-se como, desde sua implantação, o Estado Novo, que começou com o golpe militar de novembro de 1937 e terminou com outro golpe, é marcado por uma promessa de sua realização para além, por meio da união das figuras do Presidente e dos homens do trabalho. Assim, ele instaura pela sua própria auto-legitimação o governo ilegítimo, no qual o Presidente é erigido como patrão que garante ao trabalhador um lugar jurídico legal na estrutura social: o salário mínimo foi institucionalizado, o governo regulamentou a Justiça do Trabalho, através da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sistematizou a legislação trabalhista e em nome da valorização do trabalhador nacional, adotou uma política de restrição à imigração.

Ao reunir cenas de propaganda oficial, registros amadores, filmagens caseiras e trechos de cine-jornais alemães, diários e publicações da época, Escorel deixa perceber como as palavras de ordem ganham o coração do poder, são causa e finalidade, em nome da Pátria Brasileira, do Estado nacional. A nação, escrita nas bandeiras, nas ruas, nas manifestações, define a ordem das coisas, ordena o lugar de cada um, anima a marcha guerreira. Entre as imagens filmadas pelo governo alemão, uma delas mostra diversas bandeiras com suásticas hasteadas no Rio, enfatizando o flerte de Getúlio Vargas com o nazismo, ao mesmo tempo em que ele tentava manter boas relações com os Estados Unidos. Outras, mostram como Vargas constrói sua própria estátua para aqueles que o ouvem. Fica evidenciado, portanto, que o seu poder, sempre referenciado nas falas ao Eu, como o sujeito absoluto do discurso dirigido ao trabalhador sem fala, faz surgir uma ausência para aí tecer o imaginário que esta ausência permite.

Dinara Gouveia Machado Guimarães é autora de livros sobre Psicanálise, Cinema e Literatura: "Voz na Luz", Ed. Garamond; "Vazio Iluminado: o olhar dos olhares", Ed. Garamond; "Escuta do desejo", Ed. Cia de Freud.

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