Críticas


ARÁBIA

De: JOÃO DUMANS e AFFONSO UCHOA
Com: ARISTIDES DE SOUZA, RENATA CABRAL, MURILO CALIARI
06.04.2018
Por Luiz Fernando Gallego
O retrato social é mais importante do que a dramaturgia restrita a uma espécie de neo-realismo socialista.

Em Arábia, o ponto de vista que estabelece o retrato de um brasileiro humilde e trabalhador é digno de consideração pelo realismo adotado. Por outro lado, a dramaturgia desenvolvida traz questões importantes que podem frustrar o espectador informado do entusiasmo com que o filme vem recebendo elogios de boa parte da crítica e premiações em festivais. A começar por uma espécie de “prólogo” de quase vinte minutos que não guarda praticamente nenhuma organicidade com o que se segue e que será o filme propriamente dito.

Qualquer produção comercial que inventasse uma moldura prévia deste tipo geralmente teria tal recurso menosprezado, mas aqui, o jovem que descobre uma espécie de diário do personagem principal para abrir o filme que prosseguirá com o recurso de voz em off onipresente, oriunda do que está escrito no caderno encontrado, não vem incomodando a mesma parcela da crítica que admira o filme sem reservas pelo conteúdo social pertinente mencionado na nossa frase de abertura.

Este conteúdo, entretanto, demandaria uma narrativa ficcional que o filme restringe ao formato naturalista, aproximando-se do proselitismo e explicitação da “mensagem”. Por exemplo, na cena em que o trabalhador Cristiano (o nome do personagem já alude ao sacrifício de um Cristo) é destratado por um patrão que não lhe paga pela tarefa de colher tangerinas ao longo de três meses, a câmera se coloca bem distante dos personagens enquanto a fala do patrão é enfatizada por sua mesquinhez: não assinou carteira de trabalho, por isso não vai pagar pelo serviço prestado; e quando Cristiano tenta argumentar com pertinência, tentando minorar seu prejuízo, é chamado de filho-da-puta. Nossa realidade social? Sem dúvida. Mas como construção dramatúrgica a cena soa propagandística sem atingir uma forma de recriação ficcional minimamente criativa. Já vimos coisas iguais em muitos filmes “engajados” de um passado cinematográfico datado.

Antes que perguntem como estes mesmos elementos sociais poderiam merecer abordagem menos aprisionada a uma espécie de “realismo em um por um” que não amplia a dimensão artística na ficcionalização, podemos citar os exemplos clássicos: Luchino Visconti em “A Terra treme” (1948) ou na sua obra-prima “Rocco e seus irmãos” (1960); para não mencionar outra obra máxima como é “O Grito” (1957), de Michelangelo Antonioni, filme que demonstrou com extrema dignidade e respeito que no peito do operariado também bate um coração. E angústia existencial - antes mesmo de Antonioni se centrar na burguesia vazia dos filmes que faria em seguida. Quem conhece este histórico terá dificuldade em aceitar tamanho naturalismo com uma certa dose de inspiração neorrealista fora de época que sugere uma ambição didática limitada como construção de imagens e enredo.

Não é que a dupla de diretores Affonso Uchoa e João Dumans seja displicente na construção de imagens, mas há um apoio excessivo na voz em off usada como indispensável à reflexão do personagem que, inclusive, atingirá a conscientização de sua irrelevância como peça descartável no establishment social de tanta desigualdade para com a classe operária.

Também é elogiável a articulação sonora com as imagens, articulação esta que incluirá músicas de diversas fontes, o som de fundo das fábricas e o silêncio de fundo quando Cristiano se dá conta de seu papel social. Sim, ele se dá conta, tal como na trajetória de um personagem de peças do CPC dos anos 1960. Sem a grandeza de um "Eles não suam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri - que resultou no maravilhoso filme homônimo de Leon Hirszman em 1981.

Mesmo nas qualidades, o filme se ressente de tentar deixar bem explicitada sua intenção social, fazendo pensar quase que numa retomada de uma espécie de neo-realismo socialista. Atingirá as pessoas que já sabem do que está sendo falado, mas, como em várias tentativas passadas, não nos parece que alcançaria o público com a mesma trajetória do personagem - que seria o ideal de qualquer construção com maior ambição social.

Louve-se ainda não fazer uma hagiografia do personagem: ele já esteve preso por algo menos importante, ainda que em algum momento cometa um ato moral e eticamente desabonador para evitar ser preso novamente. A passagem amorosa é terna, ainda que excessivamente breve no roteiro para marcar tanto a vivência interior de Cristiano em seu amor por Ana, sempre mais pontuada pela gravação antológica de Maria Bethânia em 1966 para "Três Apitos", de Noel Rosa - do que pelos curtos trechos em que Ana aparece. Já a vida sexual prosaica do personagem e dos demais trabalhadores é omitida: até surge um puteiro, mas onde eles vão apenas fazer obras por estar com pouco trabalho na época.

A construção do ator Aristides de Souza para Cristiano acaba sendo o aspecto em que o filme atinge seu resultado menos contraditório entre as intenções sociais e a realização cinematográfica.

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