De imediato somos impactados pelo som torrencial das cataratas que desaguam em Sete Quedas. Submergidas na construção de Itaipu, funcionam como leitmotiv da relação turbulenta que se desenrola entre pai e filha.
Por anos Heloísa Passos trabalhou como diretora de fotografia e se aventurou em curtas metragens. Tomou coragem e realiza agora seu primeiro longa. Construindo Pontes é uma referência à profissão do pai, um engenheiro civil que na época da ditadura fez diversas obras publicas no estado do Paraná, onde reside. O filme é também um esforço e tentativa de diálogo e entendimento de sua vida pessoal e da vida política do país. Apesar do desejo de se discutir o que seja arbitrariedade, há também a tentativa de conciliação latente por toda a obra. Mais óbvia por parte do pai - um homem mais maduro, que em nenhum momento sai de sua posição heráldica, sustentando suas convicções diametralmente opostas às da filha. E uma filha combatente, mezzo agressiva no seu tom de voz e radicalismo exacerbado. Quando ele argumenta termos vivido no país um momento de revolução, ela rebate como tendo sido uma ditadura. Ele impeachment, ela golpe. Gerações e pontos de vistas diferentes que se abrem diante das câmeras como se estivéssemos numa sessão de terapia de família. O reconhecimento da palavra em ato e a força do não dito.
Diferente de alguns filmes de diretoras mulheres que expõem sua relação com o pai - como Flavia Castro (Diário de uma Busca), com quem trabalhou como diretora de fotografia, e Maria Clara Escobar (Os Dias com Ele) que adotam um tom suave e amoroso no relato fílmico -, Heloísa tem a audácia de colocar o espectador na posição de testemunha e cria propositalmente na audiência o mesmo incômodo sentido por ela. Um mérito que deve ser reconhecido: fazer cada um sair da própria zona de conforto onde deslocamentos psíquicos e de fato são consolidados. Uma coisa pode-se afirmar: ninguém sai igual depois de ver tamanho embate. É preciso estômago para ultrapassar os minutos iniciais. Como os surfistas que em braçadas fortes e vigorosas conseguem passar da arrebentação, até atingir uma área de flutuação inebriante e, com paciência, conquistar o tubo compensador.
A montagem do filme sustenta uma narrativa da mesma natureza. De repente, somos jogados no meio de uma avalanche de imagem e som. Sem aviso prévio, somos surpreendidos na potência do estrondo das águas volumosas da usina hidrelétrica de Itaipu em pleno funcionamento, que na linguagem tupi-guarani significa "pedra na qual a água faz barulho", através da junção dos termos itá (pedra), i (agua) e pu (barulho). Há um deslocamento para o plano do sublime, algo além do belo.
Numa costura entre passado e presente - pontuados por imagens de super-8 familiares -, vale ressaltar na equipe o trabalho bem executado por Beto Ferraz, que valoriza a memória afetiva que há no som, coadjuvante na obra. Ela fala em "deserto d'água" para descrever a paisagem em que se transformou o que antes eram as exuberantes Sete Quedas que desaparecem quando Itaipu entra em funcionamento. Como no movimento das águas e suas marés, num exercício de aceitação e tolerância mútua - necessárias especialmente neste momento convulsionado pelo qual passa o mundo -, vemos uma obra coerente com a necessidade de escuta e conciliação. A mediação se dá por meio de uma câmera ligada, como um alter ego de duas pessoas que vieram ao mundo para deixar um legado. De forma franca e sem nenhum tipo de constrangimento ou amarras, mostrando que através do mundo sensível é possível encontrar um meio do caminho apaziguador.
Marcia Vitari é jornalista, mestre em comunicação e cultura e tem contos incluídos nas antologias do Clube da Leitura, volumes I e II