Críticas


RÉQUIEM PARA A SRA. J.

De: BUJAN VOLETIC
Com: MIRJANA KARANOVIC DANICA NEDELJOVIC, JOVANA GAVRILOVIC
25.05.2018
Por Luiz Fernando Gallego
Retrato muito bem construído de uma personagem e talvez de um país.

Há pelo menos três aspectos muito interessantes no filme sérvio Réquiem para Sra. J. : o primeiro deles diz respeito ao retrato bem construído de uma pessoa deprimida, em luto patológico, e de como ela é percebida pelos que lhe são próximos, o que abre espaço para percebermos o ridículo/risível da vida, triste como ela pode ser. As filhas da senhora J. denunciam de modo tragicômico a dificuldade de conviver com essa mulher de meia idade inteiramente absorvida por sua dor, mais do que um luto melancólico, uma forma negativa de narcisismo que não abre espaço para relações vivas com os vivos, apenas para com a morte como se esta pudesse vir a ser um novo namorado.

A senhora do título perdeu seu marido há um ano e pensa em se matar no dia exato do aniversário do enterro do esposo. Para tal, encomenda até mesmo uma alteração na lápide do túmulo do falecido à qual quer acrescentar seu retrato ao lado do dele e a data do ano de sua própria futura morte (o filme se passa em 2016). Nem vai pagar o serviço pois estará morta... Tais cuidados podem nos fazer lembrar os procedimentos da personagem de Nelson Rodrigues levada às telas por Fernanda Montenegro no filme de Leon Hirszman, A Falecida. Mas enquanto a morte da brasileira era esperada como uma fatalidade sem que se tivesse que fazer nada para atingi-la, a Sra. J. tenta organizar o suicídio. Desestimulada a recorrer a uma bala na cabeça pelo estrago que os miolos deixariam espalhados no ambiente, ela tenta uma consulta médica para obter remédios que, em dose excessiva misturados com álcool, fizessem o efeito letal de modo mais “limpo”.

É quando aparece um outro tema interessante no enredo (e na forma de encená-lo): a carteira de saúde da potencial suicida está vencida! Ela terá que enfrentar uma “burrocracia” algo kafkiana (que também não nos é estranha), já que havia tido seu último emprego em uma fábrica que faliu e que não informou ao INSS lá deles as suas contribuições como empregada. A partir deste momento o filme não trata apenas de uma personagem depressiva, em luto exclusivo pela perda do esposo: parece haver um réquiem também por um país em ruínas sociais, tais como as da fábrica que ela visita. Nos ambientes públicos de repartições pelas quais ela peregrina tentando provar que tem direito à previdência social e médica, as cenas mostram os demais suplicantes por seus papéis em postura estática, como manequins teatrais, enquanto a Sra. J. e sua filha são as únicas pessoas que se mexem (mesmo que lentamente) nestes cenários de um discreto surrealismo oniroide bastante significativo imageticamente.

O outro e terceiro aspecto muito interessante, ainda no aspecto formal de como várias tomadas são encenadas, diz respeito ao uso do enquadramento retangular com ponto de fuga central, sem pretender profundidade de campo. Pelo contrário, acachapando os ambientes em tomadas rigidamente fechadas, a perspectiva servindo à sensação de falta de perspectiva existencial.

O capricho da direção - sem firulas ou exageros, pelo contrário, o filme pode parecer “simples” na sua fluidez pausada como o ritmo emocional da personagem – estende-se aos desempenhos. A filha de seus vinte anos tem um monólogo desesperado dirigido à mãe que soa cômico e a atriz Jovana Gavrilovic tem um belo momento de interpretação nesta cena. A filha de seus dez anos, vivida pela menina Danica Nedeljkovic é irresistível em sua falta de educação, fala escatológica, mas sem deixar a peteca cair em momentos mais sóbrios. As duas formam um trio admirável com a atriz central Mirjana Karanovic, veterana que já esteve em outros filmes sérvios um pouco mais conhecidos (como Quando papai saiu em viagem de negócios, de Emir Kusturica, 1985). É impressionante como ela consegue transmitir o vazio da personagem em sua expressão facial e semblante imutáveis durante quase todo o tempo em que vemos seu rosto na tela.

Um único senão fica para a conclusão pouco inspirada e pouco articulada com o que se viu até então, mas que não chega a empanar as qualidades do que vimos durante quase todo o filme.

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