Críticas


A HORA DO AMOR e a filmografia de Bergman em DVDs Versátil

De: INGMAR BERGMAN
09.07.2018
Por Luiz Fernando Gallego
É um luxo termos acesso em DVDs aos longas-metragens disponíveis realizados por Ingmar Bergman pelo selo Versátil.

É um luxo termos acesso em DVDs aos longas-metragens disponíveis realizados por Ingmar Bergman pelo selo Versátil. A única exceção é um filme que Bergman resolveu impedir de ser relançado (ler mais adiante).

No mês do centenário do diretor, a Versátil Home Vídeo também lançou o único filme de Bergman que nos faltava neste formato: pela primeira vez no Brasil em DVD, A Hora do Amor (The Touch/Beröringen), de 1971, com Elliott Gould, Bibi Andersson e Max Von Sydow. Pode não se ombrear com as obras-primas do cineasta, mas vale muito a pena que seja mais bem conhecido, revisto e mesmo - quem sabe? – reavaliado: o que funcionou e o que não deu tão certo nesta rara realização de Bergman em co-produção com capital de fora da Suécia e inclusão no elenco de atores estrangeiros? São eles: uma inglesa (Sheila Reid, em uma única cena) e um americano, Elliott Gould, na época um nome “quente” na “nova Hollywood” mais alternativa do que nas produções dos grandes estúdios. Curiosamente, esta foi também a última vez que Max von Sydow apareceu sob a direção de Bergman (aos poucos, o ator ficaria mais envolvido com o cinema americano) e o último papel central de Bibi Andersson em filmes de seu ex-namorado Ingmar (entre 1955 e ’59).

Se prestarmos atenção nos filmes que antecedem a maioria das obras máximas de Bergman, veremos que são filmes considerados “menores”. Foi assim que A Hora do Amor ficou ainda menos lembrado, provavelmente devido à força do filme que se seguiu, Gritos e Sussurros (1972), certamente uma das maiores realizações da história do cinema.

Os que preferem Persona, de 1966, concordarão que Para não falar de todas essas mulheres, lançado dois anos antes antes é, talvez, o ponto mais baixo de toda sua filmografia conhecida. Assim como, entre '61 e '63, a chamada “trilogia do silêncio de Deus” (“Através de um espelho”, “Luz de Inverno” e “O Silêncio”) foi precedida de uma comédia menor, O Olho do Diabo (1960).

Outra comédia, bem mais interessante, Uma Lição de Amor ('54), considerada por Jacques Siclier, em conjunto com o subsequente Sonhos de Mulheres ('55), como um de seus “filmes cor-de-rosa” [após o fracasso de público do sombrio Noites de Circo ('53) - que, no entanto, revelou Bergman aos sul-americanos em festivais no Uruguai e em São Paulo] dariam passagem a Sorrisos de uma noite de amor ('56), uma espécie de ópera de Mozart sem música, sua comédia maior, revelação definitiva do sueco para a cinefilia francesa, perplexa por só descobrir o artista em seu 16° filme. Como se não bastasse, logo viriam O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, ambos lançados em 1957, e sobre os quais não é preciso acrescentar nada, tal a popularidade e lugar afetivo que ocupam junto aos fãs de cinema.

No mês do centenário de Bergman, nascido em 14 de julho de 1918, a Versátil também relançou todos os demais filmes do autor e que já havia distribuído anteriormente em DVD mas que estavam fora de catálogo – agora, com preço menor do que o habitual. É assim que se pode ter acesso aos cinco primeiros filmes que ele dirigiu entre 1945 e 1948, mas ainda não inteiramente autorais, visto que os roteiros originais não eram de sua lavra, por mais que ele os tenha retrabalhado. Geralmente Porto (1948) - com uma fugaz influência do neorrealismo - é o mais considerado destas obras iniciais, mas Um Barco para a Índia (1947), lançado na França como “A eterna miragem”) pode ser bem interessante, não só pela influência do “realismo poético” de Marcel Carné (que também se faz notar no filme anterior, Chove sobre nosso amor, de ’46), mas pelo aspecto da rivalidade edípica entre pai e filho que quase chega às vias de fato.

O primeiro argumento e roteiro original de Bergman surgem em Prisão (1949), obra seminal com maior influência conceitual do existencialismo, discutindo a possibilidade do cinema conseguir realizar um filme tendo o Inferno como tema. O inferno conjugal faz aqui sua primeira apresentação, e a possibilidade/impossibilidade do casal será recorrente em quase todos os seus filmes até surgir O Sétimo Selo, sete anos e dez filmes depois. Sede de Paixões, do mesmo ano, retoma os mesmos atores, Eva Henning e Birger Malmsten, como uma dupla que desce aos infernos da vida em comum, embora decidam manter-se juntos para evitar a solidão. O terceiro filme do mesmo ano é Rumo à Felicidade, bastante melodramático: tem seu maior interesse em encontrar no elenco o mesmo Victor Sjöstrom, grande diretor sueco da época do silencioso, que encarnaria o 'Professor Isak Borg', personagem central de Morangos Silvestres.

Isto não aconteceria aqui (1950) é, ao que tudo indica, um thriller de espionagem anti-soviético, curiosidade que os fãs não terão satisfeita porque o próprio Bergman impediu o relançamento deste filme. O roteiro não era de sua autoria e ele se arrependeu enormemente de tê-lo realizado. No mesmo ano ele filmou Juventude, um de seus filmes mais apreciados por Godard quando este ainda era apenas crítico de cinema. Antecipa algo de Morangos Silvestres, ainda que numa clave mais jovem; sem dúvida um belo filme romântico doceamargo.

Quando as mulheres esperam (’52) e Mônica e o Desejo (’53), assim como Juventude, examinam casais, mas com ênfase nas personagens femininas, ainda que os atores mais frequentes em seus filmes desta fase sejam Birger Malmsten para os personagens masculinos mais jovens e Gunnar Bjornstrand para os mais maduros. Em “Mônica” ele praticamente “lança” Harriet Andersson ao revelar seu potencial. Ela viria a ser uma de suas atrizes favoritas e com quem ele manteve um caso entre '52 e '55. Já mencionamos Noites de Circo e os tais “filmes cor-de-rosa”, chegando a Sorrisos de uma noite de amor - que parece resumir tudo que foi visto antes sobre os casais homem-mulher. É aí que Bergman abandona este tema em prol da discussão sobre a morte e o “silêncio de Deus” em O Sétimo Selo. Juntamente com Morangos Silvestres (que discute a velhice sem deixar de lado a questão do conflito entre a solidão e a vida conjugal), estes três grandes filmes entronizaram Bergman definitivamente como autor cinematográfico de primeiríssima linha. É também em meados desta década de 1950 que o nome de Kurosawa vai se firmar no Ocidente e que Fellini lançou uma sequência de filmes inesquecíveis. Algumas vezes Bergman se referiu aos dois outros como seus cineastas favoritos. Um filme em episódios com os três chegou a ser anunciado, mas nunca foi posto em prática.

Como ninguém é profeta dos bons em sua própria terra, Bergman será mais bem visto na Suécia com o filme seguinte, No Limiar da Vida, de 1957, um filme feminino em sua essência, mas sem dúvida, um filme menor, cujo enredo não é de sua autoria. Mas com O Rosto, do ano seguinte, ele abre mais claramente a discussão sobre o papel do artista na sociedade de seu próprio tempo, tema que vai ser aprofundado na década seguinte a partir de Persona.

A influência de Kurosawa se fez notar em A Fonte da Donzela, bem recebido mundialmente (primeiro Oscar de melhor filme em língua não-inglesa para Bergman), mas cujo resultado não agradou tanto ao diretor. Já mencionamos O Olho do Diabo e a “trilogia” do silêncio de Deus - rótulo que ele rejeitou algum tempo depois de ter concordado com esta denominação. O tema da crença num deus criador onisciente, mas cruel para com suas criaturas, parecia esgotado (ainda que haja uma alusão indireta em Gritos e Sussurros quase dez anos depois) e ele tenta a comédia em ritmo de farsa Para não falar de todas essas mulheres, em cujo elenco ele utiliza pela última vez Eva Dahlbeck - que antes havia feito parte de vários de seus filmes. Nesta fase e até o encontro com Liv Ullmann a atriz escalada para papéis mais difíceis era Ingrid Thulin - e para ela ainda estaria reservada uma personagem dificílima em Gritos e Sussurros.

Em 1966, Persona surpreendeu até os que já tinham Bergman em alta estima: alusões políticas ao nazismo e ao Vietnã pontuavam uma nova discussão sobre o lugar do artista na Sociedade, trazendo inovações formais numa dramaturgia que, ainda que exemplar, seguia uma linhagem tradicional e até mesmo “bem comportada”. O espectador era lembrado “brechtianamente” que o que estava vendo era um filme, simulando até mesmo um rompimento da película durante sua projeção, na época o suporte básico para o registro fílmico e o cinema poder existir.

No filme seguinte, A Hora do Lobo (’68), também como recurso de distanciamento podíamos ouvir os sons do setting de filmagem antes da ordem de “ação!” e o título do filme reaparecia bem na sua metade. Terminado o monólogo de Liv Ullmann na cena final, a atriz “abandonava” a personagem e continuávamos a ver o local da filmagem se esvaziando. (Posteriormente, Bergman eliminou este “epílogo” que ainda pôde ser visto no lançamento brasileiro do filme).

Sem recorrer ao mesmo distanciamento de modo enfático, Vergonha, lançado no mesmo ano, também abordava artistas: desta vez, no lugar de uma atriz ou de um pintor - como nos dois filmes precedentes - agora eles eram músicos perdidos numa guerra indeterminada.

Em A Paixão de Ana (1969), sem ter um artista como personagem, o recurso do registro fotográfico como forma de arquivo de rostos faz parte do hobby do tipo vivido por Erland Josephson. O “distanciamento” surgia novamente ao interromper o filme quatro vezes para que os atores principais comentassem sobre os personagens que interpretavam.

Bergman era, definitivamente, um nome no cinema internacional: seus filmes eram distribuídos pela United Artists, sempre esperados e recebidos com forte interesse por uma parcela significativa de cinéfilos, tendo surgido a ideia de um filme falado em inglês (ainda que parcialmente), A Hora do Amor. A então mulher do ator Elliott Gould, Barbra Streisand, queria porque queria que Bergman a dirigisse numa nova versão de “A Viúva Alegre” e ele custou a livrar-se dela. O fracasso comercial e pequena receptividade crítica do filme com Gould fez com que a obra seguinte não tivesse distribuição garantida nos Estados Unidos, tendo sido Roger Corman (dos filmes de terror com Vincent Price supostamente baseados em Edgard Allan Poe) quem bancou o lançamento americano de Gritos e Sussurros.

Praticamente, deste filme em diante, Bergman não filmou mais exclusivamente para cinema (excetuando-se os que ele teve que realizar fora da Suécia quando se auto exilou depois ter sido envolvido num problema com o fisco), mas para a TV; às vezes tais obras também eram distribuídas para salas de cinema. Rito de 1969 já havia sido feito para a TV e ele já havia dirigido peças também para a telinha. Mas Cenas de um casamento(1973) e Face a face (’76) foram minisséries televisivas com versões condensadas para cinemas. A Flauta Mágica (’74), ópera de Mozart que Bergman tanto amava (e que já havia aparecido numa cena de A Hora do Lobo) também foi feita para a TV e sem esconder seu aspecto teatral. Pelo contrário, a teatralidade era tomada como base para o aspecto lúdico da encenação e da filmagem.

Na Alemanha ele filmou O Ovo da Serpente (1977) (novamente com um ator americano, David Carradine) e A Vida dos marionetes (1980). Na Noruega fez Sonata de Outono (1978), cumprindo uma promessa feita à sua compatriota Ingrid Bergman (1915-1982) de dirigi-la num filme. A atriz era homônima da quinta esposa oficial de Bergman, Ingrid (antes de casarem, Ingrid van Rosen).

De volta à Suécia filmou Fanny e Alexander (1982) com orçamento generoso: uma minissérie para TV de mais de cinco horas, com uma versão reduzida para salas de cinema. Mais uma obra-prima. Anunciou que este seria seu último filme (para cinema) tendo dirigido mais cinco para TV, sendo que alguns chegaram a salas de exibição (Depois do Ensaio, 1984; Na Presença de um Palhaço, 1997; e Sarabanda, 2003, outra realização excepcional). Todos estes também estão nos relançamentos da Versátil Home Video em DVD.

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