Wes Anderson comprova com Ilha dos Cachorros que é uma das vozes mais autônomas do cinema norte-americano na atualidade. Como construtor de um mundo próprio, com uma lógica própria, não há muitos outros que possamos pôr ao lado dele. David Lynch? Tim Burton?
Reconhece-se instantaneamente uma cena de um filme desse texano de Houston. Há uma simetria quase obsessiva nos enquadramentos, setas com marcações entrando e saindo da tela como se tivéssemos dentro do diário de um estudante de artes plásticas, colagens criativas se desdobrando, frases soltas de filosofia pop e literatura. Sete filmes foram suficientes para consolidar essa marca e arregimentar um bando de admiradores, mas foi a partir de seu oitavo longa, O Grande Hotel Budapeste, que realmente o estilo de Anderson alcançou sua plenitude. Ilha dos Cachorros é o filme imediatamente posterior. Se em O Grande Hotel Budapeste a reverência era ao escritor Stefan Zweig, neste Ilha dos Cachorros, é claramente o George Orwell de A Revolução dos Bichos. A diferença é que, em vez de uma fazenda, temos um Japão imaginário feito em stop-motion e no lugar de galinhas, cavalos e porcos, os protagonistas são cães e gatos.
Dá pra levar as crianças? Não. O filme é uma fábula política arrepiante. Uma alegoria sobre corrupção e autoritarismo num mundo de políticos perversos que, depois de um surto de gripe canina e doenças variadas, decidem jogar todos os cães numa ilha. Lá, eles são deixados ao Deus dará, praticam canibalismo, comem lixo e morrem por negligência. Enfim, é a materialização de um pesadelo.
Para dar um exemplo, o prefeito de Nomura (uma Tóquio retrô futurista) nobremente faz o cão de guarda que dera de presente para seu enteado, Atari, de 12 anos, ser o primeiro cachorro a ser exilado na "Ilha dos Cães". Desesperado, o menino (dublado por Koyu Rankin) ruma num pequeno aeroplano para a ilha, procurando por “Spots”, seu amado animal de estimação. Atari mal pousa o avião e é recebido por um quinteto de vira-latas assustadores. Os cães vivem um dilema: estão confusos entre a liderança do razoável Rex (Edward Norton) e o implacável Chef (Bryan Cranston, perfeito). "Vamos comer o menino, ou vamos ajuda-lo no 'resgate'?" - é o que "Boss" (Bill Murray) quer saber.
Trabalhando a partir de uma história que Anderson inventou com Roman Coppola, Jason Schwartzman e o ator e DJ japonês Kunichi Nomura, o filme evoca os sacrifícios do bando de animais, desgastados, feridos e famintos em peregrinação atrás do menino. Os cinco vira-latas apoiam a empreitada, mas isso não os impede de se questionarem a todo instante o porquê de apoiar uma criança pertencente à raça que os abandonou. Bela indagação. E ela se instala na cabeça do espectador, agarra-nos com força, obriga a paisagem a se abrir em planos inesperados, dotados de ordem e carregados de ameaça.
Claro, já tínhamos visto do que o diretor é capaz de realizar com a animação em stop-motion em O Fantástico Senhor Raposo, sua divertida adaptação do conto de Roald Dahl. A técnica e a escola se encaixam perfeitamente no estilo de Anderson. As minúcias do quadro a quadro se adaptam às suas tendências de controle, à tentativa de afinar todos os aspectos da mise-en-scène para a arte da própria realidade em um fac-símile simétrico. Por que tentar dobrar um mundo de ação ao vivo para se adequar ao seu plano mestre quando você pode simplesmente criar um inteiramente da sua cabeça? Reunindo-se com o diretor de fotografia do Senhor Raposo, Tristan Oliver, bem como com alguns dos departamentos de animação desse antigo deleite, Ilha dos Cachorros encontra sua graça inesperada novamente na colisão entre o adulto e o juvenil: seus personagens podem ser governados pelas leis da física dos desenhos animados, desaparecendo nas nuvens de Tex Avery quando se desfazem, mas eles falam, agem e são impassíveis, autoconscientes e neuróticos.
Enquanto Atari continua sua jornada na ilha, no continente uma corajosa e sardenta estudante de intercâmbio americana (Greta Gerwig) descobre uma vasta conspiração corporativa. Ela é a única personagem humana que será claramente compreendida pelos não falantes do japonês; num mundo míope, regido pela malícia frívola dos pronunciamentos, a confusão linguística de Ilha dos Cachorros torna o filme mais engraçado. Grande parte do diálogo japonês não tem legendas, o que, para o público ocidental gera um estranhamento, e apenas os cães tem os latidos dos cachorros “traduzidos para o inglês”.
Tirando o menino e a estudante engajada, não há personagens ricamente desenvolvidos entre os bípedes. Mas entre os quadrúpedes a escala de emoções é maravilhosa. Até mesmo o mais assustador deles, "Chef", projeta suas inquietações de forma tocante. Ele avisa: "Eu mordo" - mas há uma ponta de fragilidade no seu cinismo ácido. Quando o menino joga um graveto para Chef buscar, ele adverte: “Eu não vou fazer o que você quer!”. Mas logo em seguida, Chef corre atrás do graveto e o entrega para o garoto.
Ilha dos Cachorros pode vir da mesma família biológica de O Fantástico Senhor Raposo, mas é de uma raça diferente: mais estranha e ambiciosa, mais escura no tom e seguindo uma paleta de cores mais requintada. Esqueça a alegria fofa dos filmes da Disney. Anderson prefere abraçar a qualidade crua da alegria usando chumaços de algodão como fumaça e o enrugamento do plástico como água. Ele manda para o espaço a busca pelo fotorrealismo e cria uma ode aos desesperançados. Sim, a direção de arte é limpa, simétrica, mas os bonecos são sujos, frágeis. Estão ali pra acabar com a arrumação.
A invenção cosmética se estende ao seu vocabulário visual fluido: Anderson emprega quadros de estilo mangá durante o prólogo expositivo, flerta com animações 2D em estilo anime sempre que seus personagens aparecem em uma tela de televisão e impõe o estilo dos afrescos medievais em pergaminho quando retrocede para os primórdios do folclore nipônico. Pode-se argumentar que o Japão criado aqui é puro kitsch, não muito diferente da visão exótica da Índia que ele ofereceu em Viagem a Darjeeling. Mas Ilha dos Cachorros não economiza nos acenos culturais, sendo um inventário completo de saque estético-poético da cultura japonesa em ritmo pulsante. Kurosawa amaria esse filme, principalmente nos trechos heroicos de proezas dos vagabundos (Anderson usa o tema de Os Sete Samurais cada vez que os vira-latas superam uma dificuldade). A encantadora trilha de Alexandre Desplat, aliás, é magnífica. Desplast pontua a ação com tambores das festas de cerejeiras, os taikôs.
De fato, há muita coisa para ver em Ilha dos Cachorros. Temos um tributo, carinhoso e denso, a um Japão antigo e novo, real e irreal, mergulhado em pastiche e inventado a partir do zero. Um filme de esplendor humanista gostoso de ver. Apesar das crueldades que aponta, há um enorme gosto pela vida, uma entrega total aos chamados das ideias e às demandas do conflito humano. E, enfim, um brinquedos de corda meticulosamente trabalhado para golpear o queixo dos líderes corporativos.
Anderson nunca tinha atacado o corporativismo capitalista com um petardo tão direto. Aqui, ele indica os cães com sua lealdade, amizade e decência como antídoto contra a natureza perversa do capital. Em Ilha dos Cachorros, a camaradagem canina parece se tornar mais íntima e mais terna com a percepção de que somos todos exilados numa margem inóspita.