Críticas


HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA

De: FERNANDA PESSOA
22.08.2018
Por Maria Caú
Um mosaico das idiossincrasias do Brasil da ditadura num brilhante e inovador trabalho de pesquisa e montagem.

Histórias que nosso cinema (não) contava se constrói com um documentário-ensaio que justapõe trechos de filmes nacionais do desprezado gênero da pornochanchada, extremamente popular à época de sua produção (dos fins dos anos 1960 até os primeiros anos da década de 1980), construindo uma narrativa integralmente a partir dessas imagens resgatadas. Narrativa essa que se propõe justamente a refletir/comentar as transformações do Brasil no período da ditadura, do Golpe Militar de 1964 à Anistia, com foco especial na década de 1970.

O filme tem um viés fortemente político e se organiza em eixos temáticos que se sucedem organicamente sem nenhum esforço, um primeiro traço do brilhantismo da montagem assinada por Luiz Cruz. Um segundo e mais intrincado aspecto é a forma como os trechos, em geral bastante curtos, são costurados com grande habilidade, construindo novas camadas de discurso, imbuindo de ironia cenas dramáticas ou deslocando diálogos canhestros de seu sentido literal banalíssimo. A partir desse fino trabalho, surgem planos/contraplanos inusitados e ficam claras as redundâncias na estrutura dramática bastante incipiente de algumas dessas obras.

Os muitos estereótipos que surgem nesse cinema são sublinhados, revelando a amplitude do machismo nas representações femininas, o arraigado racismo, a homofobia, e moralismos de toda ordem, além de uma claríssima deturpação da realidade político-social do período. A vilanização dos militantes contra a ditadura é também evidenciada numa narrativa que não se desvia dos temas mais polêmicos, abordando ainda a hipocrisia da sociedade brasileira e as diversas nuances das relações de classe, assim como as tensões entre os universos urbano e rural. Há ainda alguns excelentes momentos de metalinguagem, que se servem muito bem a comentar de maneira bastante inteligente a censura que o cinema sofreu sob o jugo do regime limitar.

Em suma, o longa de Fernanda Pessoa tem dupla relevância: primeiro por resgatar esses títulos, alguns dos quais praticamente perdidos, num excelente trabalho de pesquisa (também assinado pela realizadora); e por trazer à tona uma ampla discussão sobre a sociedade brasileira tal qual representada/refletida no cinema nacional mais popular(esco) do período em questão.



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Outros comentários
    4814
  • Marisa Aragão
    24.08.2018 às 01:12

    Tendo estudado esse gênero e sua relevância num curso intitulado Pornochic - Curso de Cinema da UFF - e no período das pornochanchadas: Sua crítica à esse esmerado trabalho traz o olhar certeiro que instiga o leitor a ir conferir com informações preciosas. Apreciar o Cinema em suas camadas é o melhor caminho para uma reflexão refinada. Muito prazer! Vou ver!!
  • 4817
  • Maria Caú
    30.08.2018 às 21:38

    Marisa, obrigada pelas palavras! Que bom que gostou do texto!