Críticas


UM DIA

De: ZSÓFIA SZILÁGYI
Com: ZSÓFIA SZAMOSI, LEÓ FÜREDI, AMBRUS BARCZA
12.10.2018
Por Maria Caú
O sufocamento do cotidiano numa narrativa tão brilhante quanto difícil de assistir.

“Que diferença um dia faz”, cantava Dinah Washington com intenso otimismo. Pois algumas das melhores obras da história do cinema se utilizam dessa extrema concentração dramática, em geral representando um único dia ou apenas algumas horas em que algo capital ocorre para mudar a vida dos personagens drasticamente. Os exemplos abundam: Festim Diabólico, Um dia de cão, Um dia muito especial, 12 homens e uma sentença. Mais raros, no entanto, são os filmes em que a leveza, os encontros ou o peso do cotidiano são o tema de uma narrativa que se passa num período curto, que gira em torno das vinte e quatro horas que compõem uma revolução solar.

Um dia é um filme que caminha na corda-bamba entre esses dois polos. Anna (Zsófia Szamosi, em atuação precisa) é uma mãe de três filhos ainda pequenos, professora de italiano, que descobre uma paixão do marido por uma mulher do seu círculo de amizades. Ele lhe jura que era uma paixão passageira, não consumada. Anna então segue seu cotidiano pesado, pleno de tarefas e de um tipo muito específico de solidão (aquele que a mulher passa quando legada ao ambiente doméstico, tendo crianças como sua principal fonte de companhia). Essa correria indistinta, entre o trânsito e as demandas dos filhos carregados de atividades extracurriculares, força a protagonista a varrer seus sentimentos para debaixo do tapete, para vê-los emergir a partir de pequenos e grandes gatilhos, em que ela vê seu casamento ruir junto com o companheirismo que busca no marido repetidamente, muitas vezes em vão.

A diretora Zsófia Szilágyi constrói tensão com maestria numa narrativa de poucos acontecimentos marcantes. É o terror do enclausuramento provocado pelos labirintos do cotidiano que está em jogo, e a sensação de perda da identidade que acomete as mulheres que se veem ocupadas com seus filhos, sua casa, seu trabalho e seu marido a tal ponto que acabam não reservando nenhum espaço para si mesmas ou para a própria saúde mental. É um horror muito palpável, que embrulha o estômago do espectador de forma muito mais duradoura e permanente do que filmes de susto e assombrações, porquanto muito mais real e reconhecível. Embora, é preciso dizer, o filme aponte para uma clara divisão da plateia por gênero, como facilmente se constata num debate após a sessão. Homens e mulheres não assistem ao mesmo filme, e é natural que assim o seja – e isso pode ser apontado com uma das maiores qualidade da obra.

A fotografia atua organicamente nessa mesma direção, nos mantendo bastante próximos de Anna, de forma a entendermos as frágeis tessituras das relações em que ela se enreda – seja com a sogra, seja com um colega de trabalho com quem almoça – e o progressivo agravamento do seu apartamento e da sua instabilidade mental. A direção é magistral em reger esse progressivo adensar, de forma tal que Um dia é tão brilhante quanto difícil de assistir. Trata-se de um título que intensamente interroga o cotidiano e suas armadilhas de opressão, abrindo uma discussão difícil e necessária. Um desses filmes que você recomenda para todos os amigos, mas tem extrema dificuldade de rever por conta do profundo desconforto da experiência de fruição. A sutil sofisticação da narrativa, certamente uma das mais impressionantes do ano, está justamente aí: não conceder ao espectador uma experiência prazerosa ou particularmente excitante, mas afogá-lo lentamente num universo sufocante que ele (ou pelo menos ela) conhece (mais ou menos) bem.



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