Não deve ser fácil escrever o roteiro de um filme de ficção sobre Freddie Mercury e o Queen. Junto com o objetivo comercial de atingir um público enorme de fãs (e conquistar novos), há o desafio de tentar condensar, em pouco mais de duas horas, uma biografia tão complexa nos aspectos pessoal e musical. O que se vê em “Bohemian Rhapsody”, escrito por Anthony McCarten (roteirista de “O Destino de uma Nação” e “A Teoria de Tudo”) e dirigido por Bryan Singer (de “X-Men” e “Os Suspeitos”) é a opção clara pelo entretenimento, sem com isso deixar de oferecer um pouco de reflexão. Como nesse caso não dá pra separar a visão distanciada do crítico com o envolvimento afetivo do fã, o filme arrebata e emociona em diversos momentos.
O repertório de “greatest hits” executado ao longo da projeção, desde a abertura ao som de “Somebody to Love”, já traduz a intenção de tornar “Bohemian Rhapsody” acessível a qualquer público. Há poucos acenos exclusivos para fãs mais radicais, como músicas menos manjadas ou aquelas referências biográficas que poucos sacam. Além disso, embora a história seja contada em ordem cronológica, a ordem de alguns fatos está embaralhada. Um deles envolve o Brasil: o momento em que o Queen canta “Love of My Life” no Rock in Rio, no filme, se passa bem antes de 1985 (vale lembrar que o Queen se apresentou no Morumbi em 1981). Ainda assim, a cena, que serve de pano de fundo para a separação de Freddie e Mary, é uma das mais mágicas para os fãs, sobretudo para quem engrossou o coro de vozes naquele dia histórico que reuniu a maior plateia já registrada até então em um show. “Eles não entendiam nada do que eu falava em inglês, e de repente estavam cantando toda a letra da música sozinhos”, diz um Freddie estupefato a Mary. A bonita cena segue com a música ao fundo.
As licenças ficcionais não comprometem o conjunto. Até porque o diretor sabe que o grande trunfo do Queen é sua genialidade musical, e aí entra o talento de Bryan Singer. Cada momento de bastidor de composição e gravação de uma música que se tornaria antológica, junto com a potência performática dos atores que formam a banda (a decisão de manter o áudio das versões originais é acertada), assim como as cenas dos shows, dão a exata dimensão da grandeza artística do grupo. Talvez Freddie Mercury ainda renda um outro filme que se dedique mais ao seu lado humano, mergulhando esteticamente de maneira mais extravagante e sombria na vida de excessos, na solidão e na fragilidade perante uma doença devastadora, até então desconhecida, e que não poupou sobretudo mitos como ele. Mas, por hora, “Bohemian Rhapsody” cumpre muito bem seu papel.
PS. Não dá pra deixar de mencionar o tremendo vacilo da distribuidora brasileira em não traduzir e legendar as letras das músicas nas cópias em cartaz nos cinemas, salvo uma ou outra exceção. Num filme em que as músicas são escutadas quase na íntegra, e muitas vezes refletem o momento vivido pelos personagens, as letras ilustram e dialogam com o que se vê em cena. Privar o espectador brasileiro que não domina fluentemente o inglês de ter acesso a elas é um desrespeito com o público e com os realizadores do filme.