Já é hora de tratar Julio Medem, cineasta espanhol de origem basca, como gente grande do cinema. Em textos publicados por críticos brasileiros ou europeus, seus cinco longas-metragens foram e são vistos pela superfície, sem se investigar o organismo existente dentro do corpo à vista. Medem tem sido constantemente reduzido, desde sua revelação em mostras e festivais internacionais com Vacas (1992), à categoria de autor de filmes inusitados. Ou seja: não usual, estranho, fora do comum, misterioso. Adjetivos não significam muito quando empregados a obras cuja complexidade desafiam a tradução em linguagem escrita. Tornam-se apenas descrições imprecisas da aparência dessas obras, sem dizer nada sobre a essência e os significados por trás de signos "estranhos". É até compreensível nesse caso. O cineasta em questão trabalha com enigmas, não com evidências, e seus signos não cabem em significados rasos. Nos filmes do Medem, o sentido é fugidio. Não o encontramos em bulas ou bússolas de interpretações de enredo.
Mas observar os cinco longas desse autor pode nos levar a pontos recorrentes no conjunto deles. Vislumbra-se uma obra, não apenas uma filmografia. Há uma linha tênue a ligar Vacas, Esquilo Vermelho(1993), Tierra(1995), Os Amantes do Círculo Polar(1998) e Lúcia e o Sexo(2001). Possuem personagens em conflito com a falta de consciência sobre o sentido de suas vida em geral ou de algum evento em específico com os quais não sabem lidar. São seres que, diante dessa névoa existencial, vagam sem rumo. Um vagar físico ou interno, pela geografia ou em si mesmos. Medem vê como terreno desconhecido, um lugar não colocado no mapa, o desvio imprevisto na estrada. Seu cinema tateia uma noção de espiritualidade e de transcendência. Busca ir além dos fatos, do dado conhecido, dos acontecimentos ordinários. Não é cineasta misterioso, como se disse, mas cineasta do mistério. Flerta com o inconsciente sem querer traduzi-lo. Olha para um mundo interior em contraste com a realidade exterior. Busca visualizar o invisível sem revelá-lo. Evita dar palavras ao indizível para não banalizá-lo. .
Sua trajetória cinematográfica começou nos anos 70. Fez cinco curtas em Super 8 entre 1974 e 1982. Dirigiu outros quatro curtas em 35mm e dois médias-metragens antes de estrear em longa no início dos anos 90. Vacas vistoriava a violência arcaica do País Basco, a partir de uma pendenga entre duas famílias rivais. Nada realista, porém. Impunha-se o tom lúdico. No filme seguinte, Esquilo Vermelho, Medem torna-se mais Medem, por assim dizer. Ele acompanha a trajetória de uma jovem que, em fuga de seu passado e aparentemente sem memória, inicia um romance na nova vida inventada para si. Tierra radicalizou o enigma. Segue os passos em falso de uma figura da qual sabemos pouco, Angel, um sujeito empenhado em combater pragas em uma vinícola. Ele chega a um lugarejo e se envolve com duas mulheres. Dúvida. Corte. Ausência de farol para um próximo passo. Em Os Amantes do Círculo Polar, temos a autonomia do acaso/destino. Os gestos não premeditados moldam a trajetória, sem aparar seus conflitos, de um moça e um rapaz que se conhecem na infância e, desde então, sabem-se colados um ao outro para o resto de suas vidas. Um nuvem está a conectá-los pelas coincidências.
A circularidade da narrativa de Os Amantes do Círculo Polar, retomada na estrutura e no conceito de Lúcia e o Sexo, reflete a existência de um ciclo contínuo, sem começo e fim, um processo no qual os tempos convivem, lembranças interferem no presente e o presente no passado, a imaginação interage com a realidade, trajetórias avançam sem linearidade e se constróem de permanentes recomeços. Há quem considere tudo isso pretensioso pra burro. Pretensioso sim, da melhor estirpe. No sentido de ambição artística e na contramão da mediocridade, da acomodação e da aposta nas convenções. Pra burro, no entanto, não mesmo. Medem revela sua sedutora inteligência ao não afogar a sensibilidade na razão e nos conceitos filosóficos. Tem idéias na cabeça, sim, mas abre-se à intuição. Caso contrário, faria teses ou dissertações, não cinema. Sem abrir mão de objetivos estéticos, ou de pensar sobre suas opções técnicas, mergulha na própria subjetividade e, a partir dela, comunica-se com outras ilhas pelo mundo.
Não deixa de ser curioso, ou até sintomático, que seja homem de ciências. Na juventude, estudou medicina. Chegou a ingressar em curso de especialização em psiquiatria. No cinema, não busca diagnósticos para a vida e para os personagens. Está longe de querer encontrar a razão de tudo. Ele se atém aos sintomas, às dúvidas e as incertezas da existência. Os deslocamentos de suas criaturas estão em sintonia com os movimentos do universo. Para este autor tão incompreendido, pois avesso à compreensões rasas, a vida é uma ilha à deriva. Uma soma de desejos, fantasias, ações, reações e acasos, sobre os quais o ser humano não têm controle. Um mistério indecifrável. E sua grandeza está em não tentar decifrá-lo. Em vez disso, ele o respeita.
Cléber Eduardo é crítico de cinema desde 1987. Foi repórter da revista VIDEO NEWS e crítico nos jornais FOLHA DA TARDE e DIÁRIO POPULAR. Desde 1998, é crítico e repórter da revista EPOCA, e colabora com a revista SINOPSE. Prepara o livro “A Inclusão dos Excluídos no Cinema Brasileiro”, baseado em sua dissertação de mestrado.