Antes de falar do filme, é preciso chamar a atenção para o fato de que a Netflix, dona dos direitos de “Roma”, permitiu que ele fosse visto na tela grande durante duas semanas, em sessões no Rio e São Paulo com ingressos distribuídos gratuitamente. Até agora ainda não entendi qual foi a estratégia da empresa de streaming com essa atitude inédita no Brasil. Afinal, não faz muito tempo que ela e o Festival de Cannes brigaram por causa da recusa da Netflix em permitir que os filmes dela que competissem no evento fossem lançados no cinema. Na ocasião, tomei partido de Cannes, e lancei a ideia de que a Netflix estrategicamente lançasse em cinemas os filmes que produz, mesmo por um período curto de tempo, para que eles pudessem ser vistos pelo público cinéfilo na tela grande e ainda rendesse publicidade extra através de críticas e do boca a boca.
Se há uma intenção capitalista de querer destruir o hábito de se ver filmes no cinema acostumando o espectador ao streaming, não faz sentido, portanto, que “Roma” seja exibido no cinema. O jornalista Artur Xexéo, comentarista de Oscar na Rede Globo, viu na TV e publicou um texto dizendo que o filme é entediante e que acha que no cinema a experiência deve ser ainda mais incômoda, já que “no streaming a gente pode, pelo menos, interromper a ação e continuar vendo mais tarde”. Não sei o que me espantou mais: a suposição de que a experiência de ver um filme como este na tela grande possa ser pior do que no streaming ou a coragem de assumir que viu “Roma” em partes e ainda escrever um texto “crítico” sobre ele.
Quem como eu, teve o privilégio de assistir a “Roma” no cinema, vivenciou uma experiência seguramente diferente de quem o assistiu na TV ou no computador (prefiro acreditar que ninguém tenha cometido a heresia de ver “Roma” no celular). E que imediatamente me fez ter vontade de ver no cinema “The Ballad of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen, e “Okja”, de Bong Joon-Ho, filmes lançados exclusivamente na Netflix, mas que parecem ter sidos feitos para cinema. Tomara que a experiência com “Roma” nos cinemas brasileiros seja a primeira de muitas, já que cada vez mais filmes de grandes cineastas (como o próximo de Scorsese) vêm sendo financiados pela bilionária empresa de streaming.
Mas há, entre as inúmeras qualidades técnicas e artísticas de “Roma” (e sobre as quais discorrer seria chover no molhado depois de todos os elogios que recebeu), uma que o qualifica como um filme imperdível, seja em que suporte de exibição for: a sinceridade e a delicadeza do humanismo que transborda de cada frame do filme de Alfonso Cuarón, no retrato que faz de sua babá. Um artigo em espanhol que está circulando por aí tenta desqualificá-lo por uma suposta “exploração da miséria por conta de um cineasta pequeno burguês de esquerda”. É espantoso que não se consiga enxergar que o que conduz o ponto de vista da empregada no filme é a visão que Cuarón (autor do roteiro baseado na sua própria infância) tinha dela quando criança. Portanto, cobrar de suas reminiscências um engajamento político e acusá-lo de desrespeitar e não dar voz à protagonista me parece um equívoco.
O silêncio e a subserviência de Cleo, aquela que é “da família” até a hora em que precisa deixar de ver TV na sala com todos para obedecer a ordem de preparar o chá do patrão, retratam um aspecto comum na relação de classes e de gênero das sociedades latino-americanas nos anos 70 (e que em muitos lugares permanecem até hoje). Incomoda ver como Cleo é tratada muitas vezes por seus patrões e pelo rapaz que a engravida, além do paradoxo da própria gravidez, vista como um pesadelo (o engarrafamento a caminho do parto parece uma citação explícita ao sonho que abre “Oito e Meio” de Fellini). Ainda assim o sentimento que ela desperta não é de piedade, justamente porque há um afeto sincero e sem culpa na maneira como Cuarón a enxerga, e que transborda para o espectador. O significado do título, além da referência ao nome do bairro em que se passa a ação, também poder ser “AMOR” ao contrário, sugerindo que se observe no sentimento a riqueza das contradições que o envolve, e que tornam o filme ainda mais fascinante.