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OS PRIMEIROS FILMES E AQUILO QUE SE ESPERA DELES

28.10.2006
Por Daniel Schenker
OS PRIMEIROS FILMES E AQUILO QUE SE ESPERA DELES

Um breve panorama das produções contemporâneas que vêm sendo apresentadas na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo proporciona uma reflexão a respeito do que se costuma esperar encontrar nos filmes de estréia: necessidade de expressão sem concessões, disponibilidade ao risco, vigor autoral. Não se trata, de forma alguma, de apontar estas características como ilegítimas e/ou de afirmar o inverso delas, mas de questionar se elas devem ser cobradas na análise de filmes de estréia e o que a sua presença ou eventual ausência acarreta nos resultados finais.



Esta discussão surge colocada de modo mais explícito no filme de um diretor experiente, Nani Moretti. Em O Crocodilo , o diretor revisita um cinema artesanal através da figura de Bonomo, um produtor das antigas, especializado em filmes B, que, falido, decide investir todas as suas fichas na obra de uma estreante, Teresa. Numa cena decisiva, um funcionário da RAI diz a ela: “sente-se que esse filme não nasceu de uma urgência”. A impressão diz respeito ao fato de Teresa privilegiar a trilha do cinema político em detrimento do existencial em seu primeiro filme. Prefere falar de Berlusconi, ao invés de sobre si. Esta distinção é falsa, na medida em que o artista nunca tem realmente como se ausentar de si mesmo, mas, seja como for, Teresa estaria revertendo as expectativas em relação ao que muitas vezes se espera de um cineasta ansioso em extravasar através de uma câmera.



A postura de alguns dos diretores que se revelam ao espectador nesta Mostra de São Paulo é bastante variável, passando do investimento numa câmera física, ansiosa, imperfeita à impressão de uma estrutura bem comportada, convencional, ajustada. Em Amor Moderno , o diretor Alex Frayne mostra o enlouquecimento crescente de um homem, John, aparentemente estabilizado a partir da notícia da morte de seu pai de criação, de quem vivia afastado há bastante tempo. Movido pela culpa, John envereda pelo fanatismo de suas vozes interiores, realçadas pelo extremismo que parece marcar parte dos habitantes da pequena localidade rural em que cresceu e para onde retorna. Frayne faz uso dos recursos habituais encontrados em diversas estréias cinematográficas: realce no padrão estético (branco vazado, azul frio, granulado) e esforço em imprimir uma determinada atmosfera bastante à mostra (em especial, no que diz respeito ao trabalho de som – seja através de uma “melodia” sinistra que atravessa o filme, seja da passagem dos ruídos naturais para os sobrenaturais –, mas também no destaque a rostos alucinados). E o exorcismo de John, materializado em falas cada vez mais impalpáveis à medida que a projeção avança, evoca algo dos discursos ininteligíveis de Samuel Beckett (vide Lucky, em Esperando Godot ).



Também parece haver uma discreta influência beckettiana em A Sensação de Ver , outro primeiro filme, este assinado por Aaron J.Wiederspahn, que, de resto, parece caminhar em sentido diverso do de Amor Moderno . Diferentemente do filme de Frayne, este entrecruza trajetórias de personagens melancólicas que perderam o rumo na vida – um professor de inglês passou a vender enciclopédias, uma moça vive abalada pela baixa auto-estima, um ex-músico vaga desnorteado depois da trágica morte do irmão – com um rebuscamento estético que não quebra com um certo academicismo. O espectador pode temer os 136 minutos de duração, mas apenas antes da projeção: Wiederspahn não oferece maiores dificuldades à apreciação. Solidão, desencontro, incomunicabilidade, impotência, perspectiva concreta de fracasso e, principalmente, perda da esperança em si mesmo estão listados no cardápio, mas batem na tela como ingredientes acessíveis à platéia. Fica a pergunta: até que ponto a linearidade pode sufocar o desespero das personagens?



A questão pode ser tranqüilamente estendida a O Desejo Liberado , de Matthias Glassner, que também exagera na duração (163 minutos) sem ameaçar a fruição do espectador. Fruição, claro, é modo de dizer, em se tratando de um filme que sublinha em suas primeiras seqüências a brutalidade do estupro. Através da personagem Theo (interpretado por seu amigo, o ator Jürgen Vogel), que descarrega toda a sua agressividade nas mulheres como um sintoma extremo de uma fobia de intimidade, Glassner procura destacar a idéia de que o ser humano é capaz do pior e do melhor. Portador de um impulso antiético para o qual sente não haver, muito provavelmente, cura possível, Theo encontra em Nettie uma chance de salvação. Mas a pulsão destrutiva não é completamente sanada. Este “estudo de caso” do homem diante do próprio abismo é apresentado ao público de maneira convencional. O incômodo fica restrito à exposição – esta sim, nada edulcorada – do estado de Theo. Glassner estende o desdobramento dos fatos em velocidade novelesca e parece ter acertado no que não planejou: o desenho de um relacionamento que surge do vazio. Por não terem o que falar um ao outro, Theo e Nettie decidem ir ao cinema. E a melhor cena é justamente aquela em que saem da sala de projeção e andam, silenciosos, pelo shopping vazio sem que isto signifique inexistência de afinidade entre eles.



O aproveitamento do silêncio é um dos elementos que denunciam uma estrutura mais rigorosa em O Sussuro dos Deuses , estréia de Tatsushi Omori, que também procura construir personagens munidos de um olhar contemplativo que se constitui como uma ameaça antes de uma explosão de violência controlada, distante do previsível arroubo histérico. Omori se debruça sobre Rou, rapaz atormentado que ensaia uma entrega amorosa sem reservas apesar de se mostrar portador de uma revolta quase generalizada contra o mundo. A abordagem da fúria e, em especial, da intimidade é interessante, mas a articulação entre ambas não se revela plenamente bem-sucedida. Elemento dissociado da reflexão, mas necessário ser destacado: a injustificável violência contra animais, encenada ou até mesmo concretizada, parece cada vez mais freqüente no cinema.

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