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COPACABANA NÃO ENGANA EDUARDO COUTINHO

19.07.2002
Por Carlos Alberto Mattos
COPACABANA NÃO ENGANA EDUARDO COUTINHO

No próximo Festival de Gramado, uma grande novidade na carreira do documentarista Eduardo Coutinho chegará ao público pela primeira vez. Edifício Master é o seu primeiro filme ambientado na classe média. João Moreira Salles, o produtor através da Videofilmes, vive dizendo que os documentaristas brasileiros precisam deixar de lado as favelas e populações das periferias para se dedicar um pouco à classe média. Documentar o seu próprio mundo, diz ele, é mais desafiador. O encontro de João e Coutinho, portanto, é um evento marcante no documentarismo brasileiro.



Edifício Master é um concentrado de substância humana raramente visto no cinema. Durante uma semana, Coutinho e sua equipe conversaram com uma seleção de moradores de um enorme edifício de apartamentos conjugados em Copacabana. Entre eles um casal de meia-idade que se conheceu através dos classificados de um jornal, uma garota de programa que sustenta a filha e a irmã, um ator aposentado, um ex-jogador de futebol e um porteiro desconfiado de que o pai adotivo, com quem sonha toda noite, é seu pai verdadeiro. Dramas familiares, solidão, pequenas fantasias compensatórias, vaidades mínimas e convivência precária são a (i)matéria do documentário, capaz de exaurir as emoções de quem o assiste.



“É isso o que alimenta as telenovelas e os melodramas”, sustenta Coutinho, certo de que acabou de fazer um dos seus filmes mais “ficcionais”. Ele sabe que os documentários não podem almejar a verdade absoluta, mas tão somente a verdade do encontro entre o cineasta e o Outro. E que boa parcela desse encontro é “teatro”. “Toda memória tem um componente de imaginário”, diz. Assim foi com as 35 entrevistas feitas no Edifício Master, das quais 27 ficaram na edição final. Numa delas, um ex-funcionário da Panam conta seu encontro com Frank Sinatra e, batendo no peito com emoção, canta a música da sua vida: My Way.



A idéia original foi da pesquisadora e professora Consuelo Lins, que está finalizando um livro sobre o cinema de Coutinho. “Quando a Consuelo me falou sobre isso, tive um estalo. Aqueles limites me interessavam: filmar em apenas um edifício durante apenas uma semana. Encontrar a qualidade na pouca quantidade”, diz Coutinho. A escolha do prédio não foi fácil. Muitos se mostraram inviáveis devido ao excessivo ruído de trânsito. Em outros, o condomínio não aceitou a idéia de se deixar devassar por um filme. Finalmente, por um desses acasos que ninguém explica, abriram-se as portas do Master, onde o próprio Coutinho havia residido por cerca de seis meses, 35 anos atrás. Ele instruiu a equipe a não revelar à imprensa o endereço exato, como forma de proteger a privacidade dos seus personagens.



Embora só apareça em referências verbais, o bairro mais populoso da Zona Sul carioca – e o de maior biodiversidade do Rio de Janeiro – é o tema principal do documentário. Melhor dizendo, o assunto é a vida privada na grande cidade, o apartamento como último refúgio de individualidades submetidas ao exercício estressante de olhar e ser olhado. Uma das conversas mais densas de um filme inteiramente denso é com uma jovem poeta que se declara sociófoba e recusa-se a encarar a câmera. Outra moradora desabafa: “Eu adoraria matar quem esbarra comigo na rua”.



Coutinho arriscou-se como nunca a uma identificação com o objeto documentado. Ele também mora num apartamento de outro bairro há 30 anos e diz não conhecer ninguém. “Edifício não cria comunidade”, resume. Mas nada o repugna mais do que a possibilidade de generalizar ou apontar o típico. “Não quis fazer um filme sobre a classe média. Essa coisa sociológica é detestável. Aquelas são pessoas singulares, que sabem contar suas histórias de maneira rica e diferente. Se eu objetivasse a classe ou procurasse criar emblemas, seria o inferno, um assassinato simbólico”, supõe. O horror às conotações presidiu os trabalhos desde a realização das entrevistas (o diretor se colocando no que chama de “vazio atento”) até o corte final. Os depoimentos aparecem no filme quase sempre na ordem em que foram gravados, de maneira a evitar a produção de contrastes, ilações artificiais etc. Cada elemento sonoro corresponde rigorosamente à imagem que acompanha. “Nesse caso, o grande ato de coragem é ser o menos artista possível, isto é, ter um mínimo de intenções”, define Coutinho. “Em documentário, não é preciso inventar. Basta saber receber”.



Não são propriamente as pessoas que lhe interessam, mas as personagens que surgem durante o encontro. Talvez por isso tantos moradores do Master se disponham a apresentar alguma performance artística – canto, declamação, pinturas etc. “O dia-a-dia não dá filme”, garante Coutinho. Assim, que ninguém espere flagrantes da vida como ela é nos conjugados de Copacabana, mas sim confissões comovidas, declarações vaidosas, almas que se ocultam ou se desnudam aos poucos, ao ritmo das conversas com o entrevistador. “Eu sou esse”, sintetiza um dos moradores ao se recordar, com lágrimas nos olhos, de uma prova de reconhecimento de um antigo chefe.



“Ao final de cada dia de gravação, eu estava exausto com tantas experiências emocionais duras”, recorda-se Coutinho. O impacto pessoal foi ainda maior que nos dois filmes anteriores, rodados em favelas: “Quando se elimina o problema da violência e da pressão econômica imediatas, aflora o cotidiano, com suas alegrias e dores anônimas”. Na comparação, Coutinho aprendeu outras coisas. Por exemplo: na favela, as pessoas geralmente protegem mais a imagem da comunidade, já por si estigmatizada. No edifício, esse cuidado apareceu bem menos. Mais de um morador refere-se ao passado pouco familiar do Master, antes que um síndico enérgico depurasse o ambiente do prédio. O próprio síndico conta como realizou a façanha: “Eu uso muito Piaget. Mas quando não dá, apelo para o Pinochet”.



De todos, talvez seja Coutinho o mais empenhado em resguardar a imagem do restrito universo que escolheu. Vários personagens e momentos marcantes foram extirpados na edição para não conduzir a uma leitura pejorativa ou estereotipada do prédio e de seus moradores. Para o cineasta, mais importante que a verdade crua é o compromisso ético com o fator humano. Da mesma forma, Coutinho resolveu não incluir as imagens dos quadros que decoravam vários apartamentos com paisagens edênicas, européias, orientais etc. “Era o mundo sonhado por aquelas pessoas, mas poderia ser interpretado como uma crítica ao kitsch. Tirei fora”, justifica.



Eduardo Coutinho incomoda-se com o papel de modelo para toda uma geração de jovens documentaristas. Os “filhos de Coutinho” (epíteto de minha autoria) esforçam-se por captar a “verdade” do povo em sucessões de depoimentos espontâneos e fazem questão de documentar o trabalho da própria equipe de filmagem, como se esta fosse uma fórmula infalível. O mestre, porém, não estimula a imitação. “Não basta entrevistar e esperar o milagre. A palavra tem que ser um ato, uma performance que produz coisas. É preciso também saber julgar o que é ou não importante. Enfim, cada um tem que procurar o seu método”, recomenda.



A aparente espontaneidade dos filmes de Coutinho é, na verdade, fruto de uma trabalhosa engenharia do contato. Enquanto duraram as três semanas de pesquisa in loco para Edifício Master, ecoavam na cabeça do diretor os muitos anos de leituras de antropologia, história, cultura popular etc. Ele reluta em falar sobre isso para não soar esnobe. Mas basta o poder de comunicação de seus filmes para testemunhar a ampla e madura compreensão do material humano com que lidam. O que o documentarista resume com uma frase básica, mas lapidar: “Não quero saber como é o mundo, mas como vai o mundo”.





Adaptado de artigo do autor, publicado em O Estado de S.Paulo de 17.07.2002

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