Críticas


CAFARNAUM

De: NADINE LABAKI
Com: ZAIN AL RAFEEA, NADINE LABAKI
20.01.2019
Por Marcelo Janot
Uma obra necessária ao mesmo tempo por suas qualidades cinematográficas e sociais

Em dicionários, a palavra “cafarnaum” é definida como “um lugar em que há tumulto ou desordem”. Na Bíblia, Cafarnaum aparece como uma cidade onde Jesus Cristo realizou milagres e fixou residência, mas que acabou amaldiçoada por ele. A cidade de Beirute, no Líbano, onde se desenrola a ação do filme de Nadine Labaki, é uma espécie de Cafarnaum contemporânea — caótica, injusta e amaldiçoada, pelo menos para os miseráveis habitantes que vivem à margem da sociedade, sem lenço e literalmente sem documento.

No início, vemos um menino que, pressupõe-se, tem 12 anos, encarando um tribunal. Zain está preso por esfaquear alguém, mas naquele instante ele passa de réu a acusador, pois está processando os próprios pais por o terem colocado no mundo. O que se verá a seguir é o que o levou àquela situação extrema, e essa premissa (de processar os pais por ter nascido) é tão forte e impactante que ressoa não só durante a projeção, mas fatalmente acompanhará o espectador quando o filme acaba.

Não há como simpatizar com os pais de Zain, que exploram os próprios filhos como força de trabalho e chegam a “vender” a filha de 11 anos para casar com um comerciante local. Mas tampouco o filme os demoniza através de uma visão maniqueísta. O que “Cafarnaum” praticamente implora é para que tenhamos um pouco mais de empatia ao olharmos para os marginalizados.

Felizmente, Nadine Labaki faz isso artisticamente da melhor maneira possível, sem um olhar deslumbrado sobre a miséria terceiro-mundista como, por exemplo, Danny Boyle no equivocado “Quem quer ser um milionário?”.

Revoltado com a atitude dos pais em relação à sua irmã, Zain foge de casa, e a sua saga é um périplo marcado por episódios que beiram o surrealismo de tão inacreditáveis. Ao ir parar num parque de diversões, ele conhece Rahil, uma refugiada etíope que vive ilegalmente no Líbano com seu bebê de colo. Como trabalhar clandestinamente acompanhada do filho representa um tremendo risco de ser descoberta e deportada, ela passa a contar com Zain, a quem acolhe em seu barraco, para cuidar da criança, enquanto tenta desesperadamente obter documentos falsos. Em um dado momento veremos duas crianças indefesas vagando pelas ruas de Beirute.

Nada é tão triste e brutal que não possa piorar, mas a diretora (e corroteirista) consegue oferecer um olhar delicado e às vezes até doce sobre essa inocência quase perdida, como na cena em que Zain entretém o bebê “roubando” a imagem do desenho animado da televisão do vizinho com o uso de um espelho. São momentos como esse, a forma como são escritos, encenados e editados, que fazem de “Cafarnaum”, vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, uma obra necessária ao mesmo tempo por suas qualidades cinematográficas e sociais.

Mas o grande destaque é mesmo o menino Zain Al Rafeea, que interpreta Zain. Há muito tempo o cinema não via surgir um estreante mirim com tanta eloquência e personalidade, transmitindo a segurança e a determinação que exige um personagem tão envolvente — e comovente.



(texto publicado originalmente em O Globo no dia 17.01.2019)

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário



Outros comentários
    4843
  • Concy Pinto
    01.02.2019 às 14:55

    Caro Janot, Essa empatia com os marginalizados é realmente o ponto alto do filme. Ese filme devia passar no horário nobre do Jornal Nacional. Quem sabe não dá uma sacudida boa nesse povo avestruz?