Grande vencedor do Festival de Brasília de 2018, onde ganhou os Candangos de melhor filme, direção de arte, fotografia, atriz e ator coadjuvante, "Temporada" se apoia numa premissa bastante simples. Juliana (Grace Passô) acaba de ser convocada para um concurso prestado anos antes, e se muda de Itaúna, no interior de Minas Gerais, para Contagem, a fim de trabalhar no departamento de controle de endemias, especialmente no combate à dengue. Enquanto tenta estruturar ali uma nova vida para si e para o marido, que espera chegar, ela vai se entrosando com a nova rotina e os colegas de trabalho, em especial Russão.
Escrever sobre Temporada parece uma doce armadilha, pois é preciso se atrever a compreender como o diretor e roteirista André Novais Oliveira construiu uma narrativa bastante sofisticada e complexa por detrás de uma superfície aparentemente plácida e enganosamente simples, seguindo a célebre e repetida metáfora de Hemingway: criar uma história que tenha as qualidades de um iceberg, do qual se vê apenas uma intrigante ponta, com o tudo o mais permanecendo submerso, mas revelando sua presença de maneira indireta, com o leitor (aqui, espectador, o leitor das imagens) consciente das dimensões a que não tem completo acesso. Essa empreitada se sustenta a partir das atuações de todo o elenco, a começar por Grace Passô, que dá corpo e voz a uma mulher comedida e socialmente retraída, que em dado momento chega a dizer: “É que eu nunca fui de ter amigo”. A interpretação da protagonista trabalha com os pequenos gestos, que funcionam como pequenas fugas, e se preocupa em expressar de forma detida os mínimos ecos externos das grandes transformações de Juliana. A coesão das boas atuações de todo o elenco é sustentada por uma direção de atores (e, possivelmente, uma preparação de elenco) precisa e por diálogos muito bem escritos. Se o cinema brasileiro contemporâneo muitas vezes escorrega nesse quesito, criando falas que soam destoantes de seus contextos e personagens, acabando por esvaziar a qualidade de boas tramas, aqui elas cabem perfeitamente bem nas bocas dos personagens, sem perder um colorido divertido e inusitado.
Aliás, o longa navega bem entre a comédia e o drama com uma direção muito segura e uma fotografia (assinada por Wilssa Esser) que trabalha com muitos planos gerais e linhas sinuosas, que replicam a difícil jornada da personagem central, assim como sua desorientação na cidade nova, que ela precisa literalmente mapear, já que essa imersão rápida é a natureza do seu trabalho. Aos poucos, um ambiente inóspito vai se tornando mais e mais acolhedor, com os enquadramentos e a iluminação refletindo essa mudança, com destaque para dois momentos tocantes que Juliana vive com os colegas de trabalho Russão e Hélio (Russo APR e Hélio Ricardo, ambos ótimos), conversas que se dão no ambiente da cidade e revelam a beleza escondida em certos ângulos dos cantos menos fotogênicos do ambiente urbano pouco planejado e em constante (re)construção caótica.
As transições entre as sequências são orgânicas e tão bem planejadas que trazem à tona ironias e fazem o espectador caminhar entre o passado e o futuro daquela trajetória enquanto a experimenta, num fluxo de ressignificações constantes. Tudo isso sem que o equilíbrio da comédia seja perdido e sem jamais recorrer a soluções fáceis, como poderia ser a decisão, pressentida erroneamente pelo espectador, de aproximar Juliana romanticamente de um desses colegas quando a amizade que edifica com eles é em si muito mais potente e necessária para demolir sua solidão reiterada de mulher negra numa sociedade machista e racista, uma mulher que – descobrimos eventualmente –, a despeito de não ter qualquer problema congênito de fala, perdeu a voz por anos durante a infância.
Numa época em que um certo cinema sádico está bastante em voga, um cinema que costuma desenhar personagens apenas para usá-los como sacos de pancada de uma narrativa que serve tão somente para revelar a trajetória de sua dor enquanto apela ao gozo perverso do público ou ao seu horror, Temporada escolhe o corajoso caminho dos encontros e dos afetos que eles despertam. São laços que amarram os personagens de volta a seus caminhos, ainda que eles pareçam muitas vezes labirínticos (condição médica de que a personagem sofre) ou tortuosos.
O dicionário aulete assim define a palavra temporada: determinado espaço de tempo; época para certas atividades; estação do ano. É interessante que o filme desloque o sentido do título para cada uma dessas (e outras) vertentes: para o emprego em que Juliana, segundo os próprios colegas, deve ficar pouco tempo, já que paga mal; para a fase de vida em que ela se encontra, presa entre o abandono do marido e a dureza da reconstrução; para o seu futuro, que o espectador não vê, mas pressente no lindíssimo plano final, que dá a ela a possibilidade de um porvir livre, estrada a percorrer, ainda que certas curvas e alguns retornos sejam necessários.