Críticas


SE A RUA BEALE FALASSE

De: BARRY JENKINS
Com: KIKI LAYNE, STEPHAN JAMES, REGINA KING
07.02.2019
Por Luiz Fernando Gallego
Nem parece ser do mesmo Barry Jenkins que dirigiu Moonlight.

Nem parece ser do mesmo Barry Jenkins que dirigiu Moonlight este novo filme por ele assinado, Se a Rua Beale falasse. Enquanto no premiado filme anterior ele abordava personagens à margem da sociedade e do moralismo pequeno burguês como negros homossexuais, drogados e traficantes - sem induzir nenhum julgamento a priori - desta vez ele nos traz um casal negro de comportamento exemplar, sendo a moça oriunda de uma família maravilhosamente afetiva e compreensiva.

Há espaço para outra família na qual as mulheres se mostram irritantemente intolerantes, ainda que "justificadas" por sua fé religiosa (que é claramente uma forma de alienação criticada pelo modo como são mostradas). Mas este grupo familiar vai desaparecer do filme e o que resta mesmo é o calvário da injustiça sofrida por um bom rapaz, acusado de um crime que não cometeu.

É evidente que as pessoas de cor de pele negra têm sofrido preconceitos gravíssimos e perseguição injusta. O reconhecimento visual de um suposto criminoso feito por uma vítima é dito, por não poucos advogados, uma das mais questionáveis "provas" de um crime. No Rio de Janeiro, bem recentemente, tivemos um caso no qual uma reviravolta mostrou cabalmente que um reconhecimento por parte da mãe de um rapaz assassinado havia sido totalmente equivocado. Quantos outros injustiçados (especialmente negros) não terão tido a mesma sorte? A questão não é esta circunstância trágica, seja na realidade ou na ficção, mas o modo como ela é explorada dramaturgicamente num filme. O personagem de um policial que também acusa o rapaz inocente é um dos rostos mais bizarros que vimos nas telas nos últimos tempos: lembra o de um rato maldoso de desenho animado; ou uma fuinha. Por outro lado, a vítima acusadora reage histericamente a qualquer argumentação em contrário ao seu erro. Com isto, o maniqueísmo domina o enredo que acaba por se assemelhar ao das mais banais novelas dos nossos piores canais de TV.

Há injustiça social? Há marginalização dos negros, culpados ou inocentes? A questão é como trabalhar cinematograficamente de modo menos em "preto-e-branco" (vale o trocadilho) tais situações tão absurdas.

No lado “do bem”, a cena de sexo do casal é um modelo de romantismo moral e delicadeza. O rapaz teria talento potencial para ser um artista em vez de mero artesão na área de marcenaria. Da família idealizidíssima já falamos. Há algumas décadas este filme seria perfeito para Sidney Poitier encarnar seus personagens que, “embora” (ironia, certo?) negros, tinham comportamento tão bom ou melhor do que o de personagens virtuosos que sempre eram brancos. Este reducionismo terá sido uma espécie de didatismo social da época: provar que "negros também são gente" - e gente tão boa quanto os brancos idealizados pelo solipsismo/narcisismo dos caucasianos em situação de maior poder econômico. Já hoje em dia, tal tipo de representação de uma etnia ainda tão passível de sofrer preconceito acaba servindo a uma espécie de "formação reativa" que traz no seu bojo a origem preconceituosa. Só se pode vencer o preconceito idealizando personagens negros como virtuosos, sofridos e injustiçados?

Como parte de tal dramaturgia-clichê que tenta ser persuasiva temos a bela iluminação das imagens com uma fotografia de cores marcantes que chama a atenção - e uma trilha musical insistente e "climática".

Os atores correspondem aos estereótipos exigidos pelo roteiro com a dignidade possível, mas, por mais que Regina King demonstre talento, os elogios prévios e prêmios que vem recebendo nos parecem superestimados. Sua "cena de espelho", quando escolhe o tipo de cabelo que deve usar, sugere aquele tipo de tomada feita para destacar a verve de uma boa atriz - mas sem tanta relação com o enredo, por mais que tudo aconteça numa época em que, para uma mulher de pele escura atender aos modelos culturais da sociedade dominante branca, ela tivesse internalizado a "necessidade" de alisar seus cabelos.

A impressão que fica é que Barry Jenkins também quer ser absorvido pelo cinemão menos ousado na tentativa de não exigir do público nenhuma reflexão além do óbvio.

Como enredo de denúncia dos sofrimentos impingidos aos negros este filme seria ousado há bem mais de trinta anos. Também não lembra os enredos de outros livros de James Baldwin como "Numa terra estranha" ou "Giovanni", cabendo aos leitores do romance original de Baldwin, homônimo ao filme, saber se os problemas que apontamos são mais específicos desta versão para cinema ou se já advêm da origem literária.

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