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UM ESPETÁCULO É UM ESPETÁCULO

12.07.2002
Por Carlos Alberto Mattos
UM ESPETÁCULO É UM ESPETÁCULO

Capítulo 1. As evidências



Todos dizem eu te amo, Pierrot le Fou. Junto com Acossado, esta é uma das poucas unanimidades na carreira de Jean-Luc Godard. Um de seus maiores sucessos de público e de crítica, e um de seus filmes considerados mais “acessíveis”, foi também chamado de “o mais belo filme francês do nosso tempo”, ali por meados dos anos 60. Em vários países (Portugal, por exemplo), foi o primeiro filme do diretor a receber distribuição comercial, quando ele já havia realizado outros nove longas-metragens. Mesmo quem não tolera o cinema permanentemente “em obras” de Godard reserva um espaço para admitir sua admiração: “Bem, tem Pierrot le Fou, que eu adoro”.



Afinal de contas, por que todo mundo ama Pierrot le Fou?



Capítulo 2. A estrada interrompida



Não dá para dizer que Godard, ao lidar com grandes produtores como Dino de Laurentiis (Pierrot) ou Carlo Ponti (O Desprezo, 1963) estava renunciando a seu projeto de trazer o cinema para mais perto dos imprevistos e da errância da vida. Pierrot é ainda mais atomizado que Acossado. O discurso intelectual e referencial sobrepõe-se a qualquer intenção de contar uma história. A narrativa é construída por uma sucessão de quadros e alusões.



Godard trabalha com unidades e mitologias bastante reconhecidas do acervo cinematográfico clássico, sobretudo americano: o casal, o carro, o deslocamento em perigo, a aventura, o herói, o policial, a traição, a morte. Adapta com (dizem) razoável fidelidade o romance de Leonard White sobre um homem casado que larga tudo para fugir com uma jovem baby-sitter e se envolve até o pescoço com os comparsas criminosos da moça. A diferença é que Godard traz para a estrutura do filme a própria idéia de fuga e renúncia ao estabelecido.



A filmagem não teve roteiro, mas um fluxo de anotações que comandava o improviso. A falta de rumo definido é freqüentemente tematizada nos diálogos entre Pierrot (aliás, Ferdinand) e Marianne: “Para onde vamos?”, “O que fazer?”. Enquanto o cinema hollywoodiano trata da fuga como uma linha reta, Godard explora o prazer dos desvios. A certa altura, Pierrot (digo, Ferdinand) presenteia Marianne com a surpresa de uma guinada no volante para fora da estrada, fazendo seu carro mergulhar nas águas da Côte d’Azur.



Talvez ainda falte um estudo sobre Godard como mestre da arte da interrupção. Pierrot le Fou está cheio de exemplos admiráveis de quebra do eixo de repouso e automatismo do público, como a cena doméstica que desliza suavemente para o musical, a intromissão de esquetes e entrevistas com figurantes ou as falas diretamente para o espectador. As idéias de interromper, recomeçar e continuar também perpassam a ação e as conversas das personagens. Ana Karina chega a “cortar” uma cena com a tesoura diante da câmera. Em outro momento, os sons de uma briga corporal são “ilustrados” por fragmentos de um quadro de Picasso, convidando-nos a ver o filme (não apenas aquela cena) como uma construção cubista, uma visão simultânea de várias faces do mesmo objeto. A vida e ao mesmo tempo o seu relato, como no admirável plano-seqüência em que Marianne mata um segundo homem em seu apartamento e foge com Pierrot (êpa, Ferdinand) para fora de Paris.



Capítulo 3. O recreio dos signos



Em sua fuga, Marianne quer apenas seguir vivendo, à espera de que os acontecimentos reais um dia confiram com a fluência e a organização dos romances. Godard queria que ela representasse a vida ativa, enquanto Pierrot (isto é, Ferdinand) personificaria a vida contemplativa. Ele tenta escapar de “um mundo de estúpidos”, onde se conversa por slogans de publicidade e a bunda se transformou em ícone de toda uma civilização.



Godard sempre filmou movido por essa simpatia pela evasão (Pierrot começa justamente onde termina Alphaville, a saída da cidade moderna robotizada). Mas, em 1965, ele ainda estava longe do radicalismo com que contestaria a burguesia e sua cultura mais adiante. Os filmes do Grupo Dziga Vertov e da fase maoísta, que se seguiriam a 1968, estão na raiz do Godard amargo e auto-ruminante que ainda subsiste hoje, por trás da poesia de um Elogio do Amor. Em 1965, Godard ainda não se colocava como o centro do mundo, embora estivesse presente em cada fotograma de seus filmes.



Mesmo dinamitando (literalmente, no final) a estrutura do espetáculo, Pierrot le Fou permanece sendo um espetáculo. E dos mais fascinantes ainda hoje. Isto se manifesta no uso majestoso e elegante da tela Scope, nas panorâmicas sobre a natureza com que Godard pretendia reter a vida que passa, na palheta do Eastmancolor manejada por Raoul Coutard, na música calorosa de Antoine Duhamel, no humor e na ação freqüentes, no vigoroso aporte físico de Belmondo e Ana Karina a seus papéis. Numa opção até rara em se tratando de Godard, ele filma dois diálogos do casal no carro, usando uma simulação de estúdio com luzes coloridas. É clara a intenção de envolver o espectador com os signos afetivos do cinema. Mas, acima de tudo, o que presenciamos é o espetáculo da liberdade em pleno movimento.



Não a liberdade anárquica que conduz à entropia total e à mera obscuridade. Pierrot le Fou é a expressão da liberdade com sentido, como um solo de Miles Davis. Por isso nos deliciamos, somos carregados e compramos a ilusão de que ela é nossa também. É como se víssemos os elementos canônicos do espetáculo cinematográfico na hora do seu recreio, quando a obrigação de seguir regras é suspensa e surgem as mais inesperadas recombinações. As coisas mudam de lugar e se interrompem mutuamente, mas não deixam de ser as próprias coisas que são. Pierrot está num entre-lugar entre a pura experimentação e o diálogo com tudo aquilo que, no cinema, nos é familiar.



Capítulo 4. Do início ao fim, o verbo



Um filme de diálogos. Pierrot (ok, Ferdinand) e Marianne. Cultura pop e cultura erudita. Velasquez e Samuel Fuller. Cinema clássico e cinema de invenção. Filme e vida. Um completa o outro, assim como os protagonistas vão completando reciprocamente suas falas, como se ambos pertencessem a uma só unidade de pensamento. Nas paredes do quarto de Marianne, há espaço para a capa da revista Paris Match e para a reprodução da tela de Renoir. Pierrot (ou seja, Ferdinand) quer instruir sua filha levando-a para ver Johnny Guitar. O grande desejo que pulsa por trás das imagens de Pierrot le Fou (um desejo, por sinal, pós-moderno avant la lettre) é o de levar o cinema e as emoções para o campo de batalha das idéias, do qual supostamente não fariam parte. Ao mesmo tempo, lá está o impulso no sentido de um discurso poético onde vida e cinema não se contradigam nem se anulem mutuamente.



No centro dessa estratégia está a palavra, erigida a um só tempo como ato físico e como gesto lírico. Os letreiros de abertura de Godard (e este em particular, com a entrada progressiva das letras do alfabeto) são uma senha para o peso das palavras nos seus filmes. Um jogo se anuncia desde ali, e é preciso aceitá-lo. Seja nas conversas, nas canções, no esquete hilário de Raymond Devos sobre a misteriosa música da sua vida, e até no diálogo post mortem de Marianne e Pierrot (calma! Ferdinand), é pelo verbo que o autor cria o seu mundo – e o destrói quando julga melhor, deixando apenas o vestígio niilista de “um ponto de interrogação sobre o Mediterrâneo”.



Pierrot le Fou é a mais querida esfinge da Nouvelle Vague. Talvez o amemos tanto não por sua inteligência – isto existe de sobra em todo filme de Godard –, mas pela emoção e a beleza que a embalam. Talvez o amemos porque ele não se limita a trocar idéias conosco, civilizada ou agressivamente. Ele conversa ao mesmo tempo em que nos arrebata em sua maestria formal e sua poesia enigmática. Godard nunca mais resolveria tão bem essa equação. Hélas pour nous...

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