Críticas


A MULA

De: CLINT EASTWOOD
Com: CLINT EASTWOOD, BRADLEY COOPER, DIANNE WIEST, ANDY GARCIA
14.02.2019
Por Maria Caú
Eastwood e seu filme-propaganda da agenda Trump

Inspirado por uma curiosa história real, o novo filme do diretor Clint Eastwood acompanha a jornada de Earl Stone, um senhor de oitenta e tantos anos que é recrutado por um cartel de drogas para servir como mula, transportando grandes quantidades de narcóticos ao longo das estradas dos Estados Unidos. O personagem central, interpretado pelo realizador, guarda mais do que algumas semelhanças com o protagonista do último filme que ele dirigiu e estrelou a um só tempo, Gran Torino : ambos são idosos veteranos da Guerra da Coreia, misantropos, preconceituosos, desgarrados da família e de poucos amigos. Indo mais além, os dois longas foram escritos pelo mesmo roteirista, Nick Schenk. Se, no entanto, o filme de 2008 resiste mal a uma revisão onze anos depois, por conta principalmente dos estereótipos raciais sobre os quais se sustenta, em A mula Eastwood ultrapassa de vez a linha do problemático para descambar no racismo mais franco. A impressão que se tem ao assistir, tão grandes e absurdos são os preconceituosos clichês que circundam praticamente todos os personagens mexicanos, é estarmos diante de uma (mal acabada) peça de propaganda do governo Trump, por quem o diretor já declarou admiração em numerosas ocasiões. Assim, praticamente todos os personagens latinos são criminosos violentos e imprevisíveis, fortes e tatuados, cujo discurso reproduz o beabá de um linguajar que é uma projeção republicana do que seria o “espanhol das gangues”. A exceção, porque tem que existir uma num conjunto de uma dezena ou mais de personagens hispânicos, é o policial Trevino (Michael Peña), posicionado dolorosamente no papel de único latino de boa índole, a fim de criar um pobremente desenhado conflito, e apagadíssimo em relação ao herói, o também policial Colin Bates, um soporífero Bradley Cooper.

O roteiro parece escrito às pressas, já que apresenta uma coleção mal amarrada de situações clichês de manual, começando com um flashback explicativo inteiramente dispensável, e seguindo com viradas ora inteiramente previsíveis e sonolentas, ora absolutamente inverossímeis (como a constrangedora cena em que um convidado desconhecido, latino, claro, aborda Earl abruptamente no noivado de sua neta para lhe passar o contato de um cartel, após um arremedo de interação entre os dois). As personagens femininas nada mais são que recortes grosseiros de papelão, sem qualquer sinal de tridimensionalidade: a neta angelical, a filha magoada, a esposa ressentida (desperdiçar Diane Wiest num filme é um sacrilégio). Não podemos esquecer, no entanto, da sequência de bundas rebolantes expostas numa festa do cartel em que Earl vai se divertir, assim como das prostitutas com quem ele cruza pelo caminho ou das motoqueiras sapatonas que ele jocosamente confunde com homens. Aliás, jocoso também é o evidente racismo do ex-militar, feito piada sem grandes consequências, culpa talvez da idade do “velhinho”, que no final das contas é mostrado como repetidamente bem-intencionado por pequenas e banais atitudes, como trocar um pneu na estrada ou usar o dinheiro do tráfico para pequenas e grandes benesses pelas quais é sempre aplaudido em público. Na verdade, o personagem é tão absolutamente detestável (e a atuação mecânica de Eastwood não ajuda a reverter o triste quadro) que qualquer chance de preocupação com suas mazelas voa pela janela. Some-se a isso a falta completa de quaisquer justificativas do preguiçoso roteiro para o episódio-chave da trama em que ele resolve não comparecer ao casamento da própria filha, sua súbita mudança de atitude coincidindo com a ruína financeira (e a tentativa de resolver problemas afetivos pela via do dinheiro) ou o desfecho de ares heroicizantes e o panorama está completo. A única característica não deplorável nessa personalidade horrenda é o vago e mal explorado (prontamente abandonado para ser novamente retomado) interesse de Earl pelo cultivo de flores, trabalho que lhe apaixona em alguma medida.

De forma geral, toda a repetitiva narrativa gira em torno do descompasso entre a imagem de Earl, um senhor magrinho, idoso e aparentemente frágil, e o perfil de mula que os policiais costumam buscar (baseado inteiramente em estereótipos raciais). Esse debate seria interessante (e há ao menos uma cena bem-sucedida nesse sentido) se a estrutura da trama não caísse justamente na amarga tentação de diferenciar o protagonista dos criminosos jovens e latinos, justificando as escolhas de Earl de forma mambembe, uma vez que não há nada em suas circunstâncias de vida que verdadeiramente explique o recurso ao crime ou sua suposta inocência ao aceitar participar. Pior: ele não é jamais retratado como um criminoso como os membros do cartel, mas como alguém que está acima deles moral e intelectualmente, ainda que seja difícil entender as razões desse posto. Talvez por ser um americano “de direito”, um veterano de guerra, um homem no fim da vida? Talvez por ser branco? A todas essas perguntas, o filme parece responder com um sim.

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Outros comentários
    4866
  • Luiz Henrique
    15.03.2019 às 13:31

    Penso diferente da comentarista. Pra mim o filme é uma pequena autobiografia, com o personagem/Eastwood refletindo sobre a vida que teve, onde foi incensado pelos amigos/público, ganhou dinheiro e assim pode prover coisas materiais para seus familiares/amigos, tudo à custa de negligenciar relações pessoais que lhe eram caras (família), sobre as quais não tinha habilidade ou disposição para cuidar. Veja que o personagem ganhou vários prêmios por produzir belos lírios, talvez uma metáfora para a arte (os filmes de Eastwood), vendeu-se ao tráfico de drogas para ganhar dinheiro (quem em Hollywood não "se vendeu"?), e se divertiu a beça com o trabalho e com as "oportunidades" da vida que escolheu (as festas no bar, as prostitutas, etc). Acho que isso se parece demais com a vida de uma celebridade hollywoodiana para podermos descartar a metáfora. Sobre os evidentes preconceitos do personagem, que talvez sejam também de Eastwood, penso que são estereotipados demais para não serem propositais provocações do diretor, que assim não se redime, mas se abre à crítica e busca expurgar seus sentimentos mais detestáveis, que todos temos. No final pra mim fica evidente que ele não se arrepende da vida que levou, entende que cometeu vários crimes, e por isso deve pagar, mas que pretende morrer fazendo aquilo que gosta: filmes, ops!, quero dizer, cuidar de lírios.