Em meio à situação de quase ditadura cultural, com a imposição de uma ideologia única e de autocracia, que recusa e marginaliza toda e qualquer iniciativa de debate democrático, filmes com temáticas engajadas correm o risco de não encontrar o caminho das telas no Brasil atual, onde ter cultura, ser inteligente, intelectualizado e ter consciência critica tornou-se quase um crime. Parabéns para os distribuidores do excelente documentário espanhol O Silêncio dos Outros.
Produzido por Pedro Almodóvar, o filme retrata, com emoção mas sem pieguismo, a odisseia de algumas vítimas de tortura e de várias mães que tiveram seus filhos roubados na maternidade durante os quarenta anos da violenta ditadura franquista para tentar revogar uma lei de anistia que beneficiou presos políticos e algozes além de impedir que seja aberto qualquer processo contra estes últimos. Como no Brasil, e contrariamente ao Chile e à Argentina, os sucessivos governos espanhóis, de esquerda ou de direita, nunca julgaram os responsáveis por torturas, prisões arbitrárias e desaparecimentos sumários da era Franco. Uma simples tentativa de obter o depoimento das vítimas (isso mesmo, das vítimas!) na Embaixada Argentina de Madrid é cancelada sob a ameaça de ruptura de relações diplomáticas. Quando juízes sérios começam a investigar o que houve são prontamente afastados do processo. Agindo de forma suspeita, a justiça espanhola sabota qualquer tentativa cidadã de trazer um pouco de luz aos tenebrosos massacres e arbitrariedades de um período ditatorial que inventou uma espécie de eugenismo político e transformou uma convicção política em herança genética. Em nome desse absurdo, milhares de filhos de opositores ao regime foram sequestrados imediatamente após o nascimento para, muito provavelmente, evitar que crescessem e virassem esquerdistas, ou simplesmente para que não fossem degenerados pela educação de pais “comunistas”.
Enquanto os sucessivos aniversários da morte de um ditador sanguinário que destituiu um governo democraticamente eleito em nome do combate ao comunismo (trágica repetição da história!) são comemorados com efusivas saudações nazistas por seus merencórios partidários, sóbrios monumentos às vítimas são metralhados por desconhecidos; enquanto ditadores e seus feitos ocupam cargos importantes nos governos e são homenageados com nomes de logradouros, os que lutaram pela democracia são relegados às fossas comuns da história, condenados a uma dupla derrota; enquanto os primeiros têm seus atos glorificados, a ocultação da verdade transforma os últimos em criminosos. Não custa lembrar, em pleno período carnavalesco, que essa inversão de papéis que transforma heróis em vilões e vice-versa, típica da ótica dos vencedores, é exatamente o tema da Mangueira para o carnaval deste ano.
É impossível não pensar na realidade brasileira ao ver o filme. Embora tanto no Brasil quanto na Espanha o Estado reconheça as atrocidades cometidas contra os opositores das respectivas ditaduras militares, estes, assim como os demais envolvidos com a tortura, entre outras barbaridades, não reconhecem os seus erros, o que faz com que, nos dois países, os militares nunca tenham sido julgados. Exige-se o perdão por parte das vítimas, mas não por parte dos tiranos.
Para tentar conseguir com que os torturadores ainda vivos sejam ouvidos pela justiça, as vítimas espanholas e as associações que as ajudam precisaram de um malabarismo geográfico. Necessitaram pedir a uma juíza argentina que se responsabilizasse pelo processo e pedisse a extradição dos possíveis depoentes ainda vivos ou, ao menos, que a justiça espanhola autorizasse seus depoimentos. Mas para que isso se realizasse, seria preciso contar com a boa vontade dos sucessivos governos espanhóis, nem sempre dispostos a remoer a ferida, preferindo esquecer a dor e deixar o passado sempre em aberto. Em nome de uma concórdia artificial, que confunde desejo de justiça com vingança e a busca da verdade com rancor, instauraram um pacto do esquecimento que proíbe até mesmo o ensino desses fatos nas escolas e cria uma ruptura entre o presente e o passado. Mas o esquecimento temporário da dor não implica em cicatrização da ferida e nem em supressão miraculosa da História. A negação do passado não o apaga, no máximo o sublima.
Muito bem dirigido por Almudena Carracedo e Robert Bahar, o filme aborda, com uma linguagem simples mas eficaz a luta incessante por justiça das vítimas da barbaridade ou, como em muitos casos, apenas pelo direito de descobrir o paradeiro dos corpos de seus parentes e de seus filhos para poder enterrá-los, pondo um ponto final numa história pessoal que a grande História contada pelos vencedores, baseada na negação ou na reinvenção do fato histórico, insiste em obstar. A tentativa de exumação dos corpos de seus parentes cria, às vezes inconscientemente, uma expectativa de exumação da história, nem sempre satisfeita pelo Estado que, conivente com os carrascos, nega-lhes o direito ao luto e à memória, pessoal e coletiva. Como os crimes contra a humanidade são imprescritíveis, resta a vaga esperança de que um dia eles possam ser julgados.
Um dos grandes filmes desse início de ano!