Quem assiste ao novo filme de Martin Scorsese, Os Infiltrados, sem ter lido nenhuma crítica ou reportagem, e sai do cinema sem esperar os créditos de encerramento, fica sem saber que ele é inspirado em Conflitos Internos (Mou Gaan Dou), produção de Hong Kong de 2002 dirigida por Andrew Law e Alan Mak. Não seria exagero dizer que Os Infiltrados é uma refilmagem de Conflitos Internos (disponível em DVD no Brasil), por isso Scorsese, nem que fosse como dívida de gratidão, poderia ter deixado isso mais claro para os espectadores. Afinal, o thriller oriental serviu para que o diretor de Taxi Driver, Os Bons Companheiros e Cassino fizesse um de seus melhores filmes, lidando com alguns de seus temas preferidos e em um universo em que se sente bem à vontade.
A Miramax lançou discretamente Mou Gaan Dou no mercado americano em 2004, com o título de Infernal Affairs, e logo percebeu que ele renderia muito mais se fosse parar nas mãos de Martin Scorsese, que fez algumas mudanças mas pouco alterou a essência do roteiro original. É bastante interessante assistir aos dois na seqüência para, a partir das semelhanças e diferenças, tentar entender as intenções de Scorsese.
Conflitos Internos começa e termina com citações budistas: no início, lê-se: “O pior dos Oito Infernos chama-se Inferno Contínuo, significando sofrimento contínuo”. E no final: “Diz o Buda: ‘aquele que está no Inferno Contínuo nunca morre. A longevidade é uma grande punição no Inferno Contínuo’”. Em Os Infiltrados, Scorsese prefere materializar o pensamento budista na metáfora dos ratos que habitam Boston, iniciando o filme com um preâmbulo sobre o poder da máfia irlandesa na cidade, chefiada por Frank Costello (Jack Nicholson).
É em seguida a esse preâmbulo que sabemos da origem dos policiais Colin Sullivan (Matt Damon) e Billy Costigan (Leonardo DiCaprio). No filme oriental, pouco se sabe do passado dos dois protagonistas antes de se juntarem à polícia. Embora a performance de Tony Leung como Chan em Conflitos Internos seja tão boa quanto à de DiCaprio, percebe-se que Scorsese quis explorar ao máximo a complexidade do personagem ao lhe apresentar como descendente de uma família de criminosos, tendo que assumir uma identidade que ele não quis herdar. A angústia que Billy sente o leva não só ao consultório da psicanalista, como ao uso de remédios. Já a angústia de Chan se deve muito mais ao fato de que ele já está há 10 anos infiltrado entre mafiosos, e chega a pedir ao chefe para se desligar da missão.
Sullivan (Damon) e Lau (Andy Lau), os bandidos infiltrados na polícia nos dois filmes, têm perfis quase idênticos. Mas é curioso observar que, se em Os Infiltrados, Sullivan se casa com a mesma psicanalista que se envolve com Billy, em Conflitos Internos o triângulo amoroso não acontece. A relação de Chan com a psicanalista não passa de um ligeiro flerte, enquanto Lau é casado com uma escritora.
Scorsese faz do jogo de espelhos entre dois homens obrigados a assumirem identidades opostas a razão de seu filme. Em diversos momentos, Damon e DiCaprio estão muito parecidos fisicamente, e a idéia de fazê-los dividir o amor da mesma mulher parece querer reforçar isso. O problema, nesse caso, é que o romance entre Matt Damon e Vera Farmiga não funciona, talvez por falta de química entre os atores, talvez por não existir, no roteiro, nenhum elemento que convença o espectador do envolvimento entre a psicanalista de ar sofisticado e o falso policial.
É o único porém. De resto, Scorsese sabe se aproveitar das diversas qualidades do bom filme de Mak e Lau e aprimorá-las, se valendo de um elenco primoroso encabeçado por um Jack Nicholson no melhor de sua forma. Os Infiltrados tem quase uma hora a mais do que o original, mas não se percebe, graças à maestria com que o diretor faz a ação fluir, apoiado no sempre competente trabalho da montadora Thelma Schoonmaker, com quem trabalha desde Touro Indomável(1980).
Sobre Conflitos Internos, vale dizer ainda que nos extras do DVD encontra-se um “final alternativo”, muito pior que o original, sem criatividade, que foi uma imposição das autoridades chinesas, preocupadas com as “implicações políticas” que o desfecho poderia trazer quando o filme fosse exibido em seu país. E a ilustração da capa mostra, em destaque, uma gostosona de minissaia, segurando uma pistola, cena que simplesmente não existe no filme, onde as mulheres têm participação insignificante.