Críticas


UM ATO DE ESPERANÇA

De: RICHARD EYRE
Com: EMMA THOMPSON, STANLEY TUCCI, FIONN WHITEHEAD, BEN CHAPLIN
21.03.2019
Por Luiz Fernando Gallego
A ótima ideia da relação entre um paciente que rejeita tratamento médico e uma juíza não encaixa bem com a narrativa do casamento dela em crise.

Em Um Ato de Esperança Emma Thompson interpreta uma juíza inglesa (do que chamaríamos aproximadamente de nossas “varas de família”) que se vê com a responsabilidade de decidir se um jovem de dezessete, mas quase dezoito anos, pode rejeitar uma transfusão de sangue que tem chances de salvar sua vida em risco iminente.

A questão é que o rapaz, Adam Henry (muito bem interpretado pelo novato Fionn Whitehead), pratica uma religião que considera gravíssima ofensa ao Criador a aceitação de sangue alheio no próprio corpo. Sendo menor de idade, ainda que por pouco tempo, seus pais é que reagem à petição dos médicos no sentido de que a transfusão seja feita, ainda que contra a fé do jovem e de seus responsáveis legais.

Na parte inicial do filme há uma cena de tribunal durante a qual ouvimos os argumentos científicos dos profissionais de saúde sobre o risco iminente de Adam vir a óbito, assim como as alegações da advogada de defesa de seus pais...

ATENÇÃO: PARA A ANÁLISE PRETENDIDA DO ENREDO/ROTEIRO DESTE FILME SÃO INFORMADOS ALGUNS TRECHOS DA HISTÓRIA.EMBORA NÃO ABORDEMOS O DESENVOLVIMENTO PRINCIPAL RUMO AO DESFECHO, TAIS INFORMAÇÕES PODEM NÃO SER DE INTERESSE DE QUEM AINDA NÃO VIU O FILME E NÃO QUER SABER MUITO DO QUE É NARRADO.

... ela [a advogada dos pais]procura equalizar democraticamente o que é chamado de “seita” dos litigantes ao Anglicanismo, religião oficial da Inglaterra; afinal, todas as religiões têm as suas crenças e recomendações, por vezes bem particulares, por mais que algumas possam soar mais estranhas do que outras para o senso comum.

O pai (Ben Chaplin, em ótima intervenção) também é ouvido, e o advogado dos médicos expõe o fundamentalismo daquela crença baseada em uma leitura concreta do Gênesis - e segundo a qual, além da transfusão de sangue, masturbação e homossexualismo seriam igualmente gravíssimos pecados. Tentam caracterizar que o rapaz, tendo sido criado de modo a ficar imerso naquelas concepções, não teria tido chance de uma verdadeira escolha baseada em valores diversos dos daquela crença.

A juíza Fiona Maye escuta todos atentamente, fazendo brevíssimas intervenções, e tem a seu dispor a letra da lei britânica, o “Children Act” (a "Lei das Crianças" que dá o título em inglês do filme), dispositivo legal publicado em 1989 na Grã-Bretanha. Acima de tudo, deve vigorar o bem estar e o interesse dos menores de 18 anos, dando poderes para as autoridades decidirem com base nesta lei tudo o que diga respeito aos menores, até mesmo acima do que pretenderiam seus pais.

Mas Fiona surpreende ao optar por ir escutar o próprio Adam no leito de hospital antes de tomar sua decisão. Parte da plateia entenderá que alguns depoimentos sobre a inteligência e brilho do jovem gravemente doente poderiam ter levado a juíza a considerar algo similar ao conceito brasileiro de “emancipação” - que não sabemos se existem nas leis inglesas. De qualquer modo, é plausível supor que a juíza vai conhecer Adam para considerar se ele poderia estar na mesma situação de um jovem de 18 anos completos, pois com 18 anos o cidadão britânico pode recusar um tratamento médico e não há nada a fazer no sentido contrário. Mas com 17 anos ainda é a juíza quem decide, mesmo em confronto com os pais, os responsáveis legais pelos menores até então.

Outra hipótese é que Fiona tenha realizado a heterodoxa visita hospitalar por motivos pessoais ligados a uma crise em seu casamento de muitos anos, sem filhos e com o marido em vias de assumir um caso extra-conjugal; esta associação não fica bem clara, como e porquê. Mas pelo desenvolvimento que o enredo vai ter, não se pode descartar a hipótese de que o roteiro tenha pretendido tal associação entre as situações pessoal e profissional.

Para padrões ingleses, a visita de Fiona ao rapaz doente fica ainda mais heterodoxa pelo que acontece: em algum momento ela solicita ao paciente que dedilhe o violão que ele mantém perto de si e chega a cantar a letra da música que ele toca sem conhecer as palavras - na verdade, diz ela, é um poema de Yeats que numa passagem fala de quando se é “jovem e tolo”.

Uma ideia interessante que essa história poderá provocar é relacionada a um provérbio oriental segundo o qual você se torna responsável pela vida que você salva.

Outros podem lembrar da conhecida citação de Saint-Exupery: “Tu és eternamente responsável por tudo que tu cativas”.

Pois o que acontece é que o jovem Adam, sobrevivendo - após a transfusão autorizada pela juíza - revê suas crenças religiosas como se fossem as de um “jovem e tolo” e desenvolve uma fixação na pessoa dela, passando a ser a vez dele de mesclar o que teria sido uma relação profissional com um anseio pessoal de maior convivência com a pessoa que lhe teria permitido não morrer.

Qualquer um minimamente informado sobre Psicanálise lembrará a ideia de “amor de transferência”, situação em que uma pessoa em análise desenvolve enorme afeto, admiração, idealização, e mesmo apaixonamento, pelo(a) psicanalista: uma forma ilusória de amor que, na verdade, seria a transferência de antigos afetos vivenciados na infância, satisfeitos ou não, para o seu terapeuta. No caso de Adam, é evidente que ele passa a ver na juíza uma mulher que lhe deu a vida de volta, permitiu que ele continuasse vivo, diferentemente de sua mãe ou do seu pai que, apesar de sofrerem com a hipótese da morte do filho, colocavam acima dele a suposta exigência de um Deus inclemente. A juíza passa a ser também como o próprio Deus-criador, em tudo poderosa: como não admirá-la, idealizá-la, ou até mesmo amá-la?

A questão é que "transferências" ocorrem na vida de todos nós, fora dos consultórios de psicanálise, sendo que a grande diferença existe na suposição de que os analistas saibam detectá-la e trabalhar sobre ela, enquanto no dia-a-dia as pessoas simplesmente vivam suas relações sem se dar conta dos aspectos transferenciais. Outra questão é que mesmo os analistas não estariam sempre inteiramente livres de suas próprias transferências (a chamada "contra-transferência" do analista), podendo se deixar embolar nas tramas emocionais do fenômeno quando ocorre "em mão dupla". Seria este o caso da juíza, mulher de meia idade, com mais de cinquenta anos, sem filhos e ameaçada pelo fim de uma relação conjugal estratificada? Ela teria deixado em segundo plano sua postura estritamente profissional ao ir visitar o jovem Adam, lidando com ele como se fosse o filho que ela nunca pôde ter?

Artistas criativos têm enorme sensibilidade para detectarem situações psicológicas complexas e - não raras vezes - se anteciparam às ciências humanas na esfera da Psicologia ao descreverem os mais variados aspectos de nossa humanidade. No caso, o romancista Ian McEwan parece ter percebido algo muito plausível no roteiro que escreveu para este filme (baseado no romance que ele mesmo escreveu e publicou em 2012, traduzido no Brasil em 2014 como "A Balada de Adam Henry"): as consequências do que se passou antes entre a juíza e o jovem Adam num momento excepcional na vida de ambos. Mas há aspectos muito insatisfatórios em torno deste excelente ponto central.

A crise conjugal da juíza com seu marido, Jack (Stanley Tucci, num personagem unidimensional e nem semrpe muito convincente), parecerá a alguns muito bizarra. Claro que Fiona é autocentrada, vive inteiramente para seu extenuante trabalho que lhe ocupa horas e horas do dia, seja dia útil ou fim de semana. Claro que ela negligencia seu casamento, exceto por compromissos formais e sociais. Apenas alguma atividade ligada à música preenche suas poucas horas vagas. Ela toca piano e um breve flashback indica que o instrumento foi presente do marido que repete que sempre a amou e a ama, mas reclama de que a vida sexual (e afetiva em geral) do casal está totalmente em ponto morto há quase um ano. Jack foge ao padrão comum de transar fora do casamento às escondidas e comunica à mulher que vai assumir ter uma amante, sem querer absolutamente se divorciar. Fiona recebe tal notícia com total indignação, não conversa sobre o assunto, apenas diz que isso a leva a querer o divórcio e ponto final.

É estranho esse Jack que quase “pede licença” à esposa para ter uma amante e é estranha a reação dela que nem nega nem discute as questões que ele levanta. Tudo é possível entre casais, o escritor faz o que quer com seus personagens, mas a intenção aparente de McEwan cruzar a história (ótima) do rapaz que se transforma quase num “stalker” de Fiona – por um lado – com, de outro, a história (mal desenvolvida) do casamento em naufrágio, acaba tendendo à anulação das qualidades do outro lado do enredo que é o que domina o filme: a relação subsequente entre um confuso e sensível Adam e uma perplexa Fiona.

A direção inteiramente aderida e submissa ao roteiro de McEwan não faz nada para melhorar as deficiências da dramaturgia, piorando-a em momentos em que apenas o talento de Emma Thompson, a boa direção de arte, fotografia e trilha musical ajudam.

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Outros comentários
    4873
  • Concy Pinto
    21.03.2019 às 20:59

    Caro Gallego, acabo de assistir o filme. Realmente a ligação do casamento mal andado e o que poderia ocorrer caso ela vivesse a experiência com o garoto, não tem muita lógica. Pode-se comparar com outro filme em cartaz que fala de relacionamentos duradouros, mas que a relação é mostrada desde o início, e que desenvolve bem a historia e seu final interessante para os valores arraigados. No filme em questão não há esse desenvolvimento, além de perder a boa ideia de discutir valores religiosos e letra da lei. Emma Thompson é fantástica. Ela carrega bem os dilemas pessoais nem sempre explícitos. Gostei do filme mesmo assim.
    • 4874
    • Luiz Fernando Gallego
      22.03.2019 às 05:09

      Obrigado pela opinião manifestada. Emma Thompson é uma atriz espetacular mesmo. Estou lendo o livro e a relação conjugal em crise está parecendo mais bem colocada na forma literária. Mas ainda estou no início.
    4877
  • Alberto Flaksman
    28.03.2019 às 12:46

    No livro, Jack, o marido, se queixa que ele a Fiona, a mulher, não fazem sexo há mais de 7 semanas. Alguém deve ter comentado com Ian McEwan que, em se tratando de um casal de ingleses, 7 semanas não eram nada demais, estavam dentro da normalidade. McEwan então mudou o diálogo no filme, no qual o marido declara que eles não fazem sexo há 11 meses. Ah bom, dirão os espectadores, agora o prazo já está ficando bem esticado. Justifica-se a impaciência de Jack, que no caso do livro era exagerada. O roteiro serviu como uma segunda chance para McEwan retificar o seu erro original.
    • 4878
    • Luiz Fernando Gallego
      28.03.2019 às 12:59

      Sete semanas e um dia. Deve ter sido esse dia a mais (ou a menos, depende do que se fala) que deve ter irritado o planejamento britânico do Jack, Alberto. O problema não deve ter sido sete semanas ou onze meses, mas a quebra na pontualidade inglesa rs. Valeu a observação! Muito boa!
    4880
  • Haroldo de Araújo França
    04.04.2019 às 16:21

    Parabéns pela análise. Profunda, mas de leitura bem factível mesmo para um cinéfilo de cultura mediana como eu. Passarei a acompanhar as críticas deste site.
    • 4881
    • Luiz Fernando Gallego
      04.04.2019 às 19:35

      Obrigado, Haroldo.