DVD/Blu-ray


A ARTE DE FRANCESCO ROSI – caixa de DVDs da Versátil

De: FRANCESCO ROSI
Com: ROD STEIGER, ROSANNA SCHIAFFINO, SALVO RANDONE, 'MIGUELIN'
26.03.2019
Por Luiz Fernando Gallego
A inclusão de O Bandido Giuliano já bastaria para justificar a importância desta coletânea.

A inclusão por si só de O BANDIDO GIULIANO no box A ARTE DE FRANCESCO ROSI já justificaria a importância e o interesse despertado por este lançamento da Versátil - que ainda traz, em dois discos de DVD (cada um com dois filmes), As Mãos sobre a Cidade, Os Bravos da Arena e A Provocação - que foi o primeiro longa-metragem dirigido por Rosi. O lançamento de Giuliano em DVD nacional é um verdadeiro acontecimento, visto que, para muitos, é a obra-prima de um diretor que não vem sendo lembrado como merece, além de ser o primeiro grande filme político, realização seminal de uma leva do gênero que vários cineastas italianos consagrariam ao longo das décadas de 1960 e 70.

Quando se fala, hoje em dia, em “cinema político”, muitos vão se lembrar de Costa-Gavras que, no entanto, segue uma dramaturgia bastante diversa da que Rosi usava em suas obras, sendo Giuliano um exemplo excepcional: mesclando uma pegada de feitio documental com construção ficcional, sem abandonar o rigor estético, não é exagero dizer que Giuliano trouxe inovações e representou um ponto de virada na história do cinema tão marcante quanto um Cidadão Kane ou, num outro extremo, Ano Passado em Marienbad, no que diz respeito à exposição acronológica do enredo. Se, por um lado, ao utilizar não-atores (com duas exceções apenas) pode parecer um evidente derivado do neorrealismo, ao qual Rosi esteve ligado como assistente de direção de Luchino Visconti em La Terra trema (1947), por outro, a construção fílmica extrapola o formato neorrealista com suas idas-e-vindas no tempo, assumindo um aspecto investigativo que exige do espectador participação ativa, não lhe ofertando nenhuma “resposta pronta” como a que se encontra em tantos filmes ditos “políticos”.

Entre as imagens de dois diferentes corpos no chão – uma, abrindo, outra encerrando o filme, passam-se 123 minutos que capturam nossa atenção através de diferentes registros utilizados com maestria: na primeira metade predomina a reconstituição de episódios reais filmados nos mesmos lugares em que os fatos aconteceram, enquanto, na segunda hora, uma sequência de tribunal ocupa boa parte do tempo.

Sem buscar apenas o belo pelo belo, há, não obstante, tomadas impressionantes de enorme impacto visual na primeira hora do filme: as mulheres de um vilarejo em corrida desabalada pelas ruas (ver foto) tentando evitar a prisão de praticamente todos os homens adultos da localidade para investigações; a mãe do bandido assassinado abraçada ao seu corpo em gemidos lancinantes; o massacre a céu aberto de manifestantes comunistas num primeiro de maio do pós-guerra, na localidade Portella dela Ginestra, acontecimento de 1947. O amante de cinema lembrará de cenas de multidão tão impressionantes como estas encontradas em filmes de Sergei Eisenstein, mas a concepção imagética de Rosi é totalmente outra, ainda que não menos impactante. A beleza transborda da emoção e do significado das imagens.

Nas cenas do julgamento recriado, o espectador ficará tão perplexo quanto o juiz em busca da verdade sobre o massacre mencionado e o assassinato do bandido: a máfia, policiais, o exército, políticos... quem estaria interessado na morte de Giuliano?

Concebido originalmente sob o título, depois abandonado, de “Sicilia, 1943-1960”, foi O Bandido Giuliano que deu a Rosi o Urso de Prata de melhor diretor no Festival de Berlim de 1962. É seu terceiro longa, seguido de AS MÃOS SOBRE A CIDADE que, por sua vez recebeu o Leão de Ouro em Veneza, 1963, premiação polêmica numa competição que também incluía O Criado de Joseph Losey, Céu e Inferno de Kurosawa, Muriel, de Alain Resnais e Trinta anos esta noite, de Louis Malle - entre outros títulos importantes e até hoje admirados.

Independente de preferências, este outro filme de Rosi é mais um trunfo desta caixa, mantendo sua desconfortável atualidade ao abordar a corrupção entre políticos e especulação imobiliária: favorecimentos com aspecto de legalidade devido ao esgarçamento das leis criadas pelos próprios políticos de acordo com seus interesses particulares. Há uma incômoda sincronia entre o que estava sendo denunciado por Rosi em sua cidade, Nápoles, e o que se passava na mesma época no Rio de Janeiro, quando favelas em lugares nobres da Zona Sul carioca desapareciam para dar lugar a construções luxuosas nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas. Sem repetir o formato mais complexo de O Bandido Giuliano, é outro ponto importante no resgate deste cineasta menos lembrado atualmente.

Complementam o box: o já mencionado primeiro filme do diretor, La Sfida (título original de A PROVOCAÇÃO), de 1958 - que já mostra um estreante em vias de atingir a maturidade depois de anos como roteirista e/ou assistente de direção de nomes que já estavam consagrados, como Antonioni e Visconti; e OS BRAVOS DA ARENA, lançado em 1965, realizado logo após As Mãos sobre a Cidade, tendo causado estranheza e provocado forte incompreensão na época. Acompanhando a trajetória de um jovem camponês espanhol do interior com talento para ser toureiro, o filme foi mal avaliado como sendo apenas mais uma abordagem da tauromaquia em um país que não era o de Rosi.

As cenas de touradas podem chocar a sensibilidade atual que rejeita este espetáculo que tanto maltrata os animais. Mas não só animais: o que não foi percebido pelos críticos de então foi que Rosi estabelecia paralelos entre o sacrifício dos touros e o tratamento dado a seres humanos naquela Espanha ainda sob a ditadura franquista, atrasada e sem perspectiva para os nascidos em grupamentos sociais menos favorecidos. Ter realizado este filme na Espanha parece ter sido fundamental para o belo resultado que ele obteria tempos depois quando rodou a ópera “Carmen” em locações da Andaluzia (1984)

Nos extras, destaca-se um documentário de quase uma hora que mostra depoimentos do próprio Rosi sobre sua obra, pequenas participações de Martin Scorsese e Gisueppe Tornatore e breves cenas de quase todos os seus – apenas! – 17 longas realizados entre 1958 e 1997.

Sem dirigir depois de A Trégua (1997, baseado em livro de Primo Levi), ele viria a morrer em 2015. Se este importante lançamento pode colaborar para reacender o interesse por Rosi e seus filmes, é uma pena que não tenhamos disponíveis outras de suas grandes obras retratando situações políticas, como o excelente Cadáveres Ilustres (1976); ou aqueles bem aproximados da estética de O Bandido Giuliano - como dois dos que Rosi teve no elenco o grande ator Gian Maria Volonté (1933-1994): Lucky Luciano (1973) e O Caso Mattei (1972) - com o qual levou a Palma de Ouro em Cannes, tendo sido um dos raros grandes nomes premiados nos três grandes festivais europeus, Berlim, Veneza e Cannes - além da indicação ao Oscar de filme em língua não-inglesa com o belíssimo Três Irmãos (1981).

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário



Outros comentários
    4876
  • Ceci Constant Lohmann
    26.03.2019 às 08:02

    Comentário excelente...Além de um bom psicanalista você também é um profundo conhecedor de Cinema.