Incuráveis reúne elementos teatrais (ou assim convencionados), como poucos atores, locações reduzidas e destaque ao texto. Gustavo Acioli não esconde a raiz deste seu primeiro longa-metragem: a peça A Dama da Lapa , de Marcelo Pedreira. Mas, apesar de utilizar ferramentas talvez mais próximas do teatro que do cinema, a exemplo da importância da iluminação na delimitação espacial de zonas de luz e sombras, o diretor destaca a presença de uma câmera que exibe uma cena estilizada na contramão da proposta de construção quase invisível do real bancada por Karim Aïnouz em O Céu de Suely , outro filme brasileiro em cartaz. Juízos de valor à parte, é difícil não se sensibilizar com o aproveitamento das cores – o vestido azul da mulher, a parede verde-escura do quarto, o cobertor vinho, etc – na fotografia de Lula Carvalho.
Um plano sobressai: o de Fernando Eiras, na penumbra, vestido de mulher. É também o começo da melhor parte de Incuráveis, aquela em que as duas personagens (uma prostituta e o cliente que a contratou para ouvi-lo por uma noite) invertem o jogo, até então, estabelecido e se apropriam das falas formuladas pelo outro (não por acaso, o espelho é um dos objetos mais valorizados pela câmera). A pergunta central do filme – “O que nós fazemos com tudo isso que somos?” –, repetida várias vezes ao longo da projeção, ganha o reforço de uma segunda questão lançada por Eiras – “por que uma mulher num corpo de homem?”. A indagação, além de trazer à tona o descompasso entre imagem física e imagem subjetiva (já abordado no ótimo Vera , de Sergio Toledo), sublinha, junto à primeira, as principais discussões embutidas em Incuráveis : cada ser humano reúne características diversas em sua “composição”, tende a buscar o inacessível e representa personagens que não são dissociadas mas fazem parte de si.
Felizmente, a concepção estética não se sobrepõe à reflexão. Os atores permanecem como peças fundamentais e correspondem à responsabilidade. Dira Paes realça um pouco demais a intensidade de sua personagem, mas estabelece boa contracena com Fernando Eiras, que apresenta uma interpretação filigranada, premiada com justiça na edição passada do Festival de Brasília.
# INCURÁVEIS
Brasil, 2005
Direção: GUSTAVO ACIOLI
Roteiro: GUSTAVO ACIOLI, MARCELO PEDREIRA
Produção: LARA POZZOBON, PEDRO ROSA
Fotografia: LULA CARVALHO
Música: LEO GUIMARÃES
Elenco: FERNANDO EIRAS, DIRA PAES
Duração: 82 minutos