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ALTMAN, UM CINEASTA "DO RAMO"

23.11.2006
Por Luiz Fernando Gallego
ALTMAN, UM CINEASTA "DO RAMO"

Onde hoje fica a sala do cine Estação Botafogo, no Rio de Janeiro dos anos 1970 havia o comprido Cine Capri, uma tentativa do circuito Severiano Ribeiro de ter salas com nomes de cidade italianas em lugares ruins de estacionar, mas que tinham o atrativo de lançarem filmes com exclusividade. A original era o Cine Veneza, naquela terra de ninguém antes de começar o Aterro quando se vem de Botafogo. Foi lá, no Capri, que eu vi M*A*S*H*, precedido da expectativa de uma Palma de Ouro em Cannes.



Claro que todos entendemos que aquela guerra retratada com total irreverência e desfaçatez não era a Guerra da Coréia, mas a Guerra americana em curso na época: a do Vietnam. E com isso não se brincava, diziam nossos manuais de seriedade e correção política, muitos anos antes das expressões “politicamente correto” ou “patrulhas ideológicas”. Mas só as expressões não existiam.



Além do mais, filme bom era drama. Podia ser drama “político” (Glauber, por exemplo) ou “existencial” (leia-se Bergman ou Antonioni), mas naqueles tempos não havia muito motivo para rir de coisas sérias. É como se não percebêssemos que Uma Mulher é uma Mulher era uma espécie de Vincente Minnelli filmado pelo mesmo Godard que filmava A Chinesa. Ou que Buñuel era mais “político” rindo e zombando de seus personagens burgueses do que outros tantos filmes “zangados” e explicitamente “engajados” ou “progressistas”.



Robert Altman chegou para bagunçar a guerra, a morte “heróica” em batalhas, a “nobre profissão” de médicos de hospitais de campanha. A irreverência do comportamento de Elliot Gould e de Donald Sutherland fazia rir, mas, antes de mais nada, era bem chocante para nossos preconceitos. E o filme era mesmo desconcertante quando o humor ainda não tinha perdido as estribeiras do cinismo pós-moderno.



Assim seguiu Altman, fazendo filmes “maiores” e “menores”, muitos muito bons, muitos até mesmo ruinzinhos, com uma obra onde o todo ainda me parece maior do que a melhor das partes. Porque é no todo errático do conjunto de seus filmes, de fazer e filmar o que foi possível com enorme liberdade de só fazer o que queria (ou o que conseguia – uma liberdade paradoxal, portanto, mas assumida) que Altman se manteve até 20 de novembro de 2006 como um dos maiores cineastas de todos os tempos. “Cineasta” na acepção da palavra: um sujeito que se comunica através de uma linguagem eminentemente cinematográfica, onde o modo de filmar, os movimentos de câmera, os enquadramentos, os cortes, a narrativa enfim, geralmente importam mais do que os roteiros - que podem ir dos excelentes contos que compuseram Short Cuts até bobagens como em Além da Terapia, esquisitices mal resolvidas como em Quinteto, esquisitices sublimes com as de 3 Mulheres, ou mesmo enredos esgarçados como os dos terminais De Corpo e Alma e A Última Noite, nos quais o Cinema com “C” maiúsculo em si mesmo é que faz a grandeza do que se assiste. Algo como se a modelo que posa para o pintor não fosse necessariamente maravilhosa, mas o quadro pronto é de uma beleza que nos deixa atônitos, a maravilha em si da transformação efetivada pela criação artística quando bem-sucedida.



Mas ao contrário da procura que teve durante o Festival do Rio 2006 (público cinéfilo), a carreira comercial de A Última Noite não me parece ter sido bem-sucedida. Quando revi o filme, as pessoas saíam no meio da sessão (mesmo na Sala 3 do Estação, já bem vazia). Talvez esperassem encontrar Meryl Streep dando shows de composição dramática como nos filmes que fizeram a fama da atriz (ou então, flutuando em bolhas de prosecco azedo em coisinhas como O Diabo veste Prada)... mas ficaram desconcertadas com a postura “casual” de Meryl fazendo dupla caipira com Lily Tomlin, lembrando a “mãezinha” das personagens, a quem dedicavam suas canções piegas, nas quais parecem (?) acreditar com a ingenuidade de almas puras de artistas populares - aqueles que vão “aonde o povo está” (o povo, o público que gosta do estilo de tais artistas, é claro). Cada um tem que procurar e encontrar seu público, “a sua praia”. Mas a sala (pequena) já estava vazia num sábado à noite... Minha mulher diagnosticou: "As pessoas têm dificuldades com filmes abstratos”. Como seria, talvez, Além das Nuvens, de Antonioni e Wim Wenders, onde, mais do que o que é narrado, importa é a narrativa. Isto não é desculpa para um roteiro “fraco”, mas que é uma espécie de pauta ou partitura que, por melhor que seja, dependerá de uma execução virtuosística do intérprete. Quem quiser pode encontrar uma reflexão sobre a finitude perpassando tudo que é terminal na “última noite” de um programa de rádio que vai acabar, de um teatro que vai ser destruído, etc. O teatro real está lá e o programa não acabou. Consta, entretanto, que Altman hesitou em aceitar a personagem da “Mulher Misteriosa”.. Teria sido convencido pela atriz Virginia Madsen, que interpretou o papel de um delicado e suave anjo da morte. A vida imitou a arte. Pena. Mas não há outra "saída" de cena que não esta...



Altman desconcerta e provoca porque nunca se conformou em ficar numa "praia", jamais se refestelou ao sol... O que atrai e importa mais em sua obra é essa liberdade de variar e de não ter que filmar “grandes” histórias. Daí o grande encontro com os contos que compõem Short Cuts. Essa estrutura de pequenas anedotas e personagens que se cruzam é uma “marca” de boa parte de seus filmes mais (ou nem sempre tão) celebrados como Nashville, Prêt-à-Porter, Kansas City, Cerimônia de Casamento e a unanimidade recente que foi Assassinato em Gosford Park.



Mas o desaparecimento de Altman nos faz lembrar - e sentir saudades - da enorme variedade de filmes que ele deixou fora deste formato "mosaico" e estilos que ele experimentou: uma fábula meio surrealista como Voar é com os Pássaros, o “western” em tom menor Quando os Homens são Homens, o filme de gangsters de terceiro escalão Renegados até a Última Rajada, a versão “cool” de Phillip Marlowe em The Long Goodbye, os “teatros filmados” que nem chegaram às nossas telas de Fool for Love (de e com Sam Shepard) ou de Come Back to the Five and Dime, Jimmy Dean, Jimmy Dean, com espetaculares desempenhos de Cher, Karen Black e Sandy Dennis. E ainda um outro “teatro filmado” que passou por aqui, o arrasador Streamers (Exército Inútil). Raras vezes o “teatro filmado” foi tão bem filmado e tão bom Cinema.



Também dá vontade de rever para reavaliar os “fracassos” de Popeye, Buffalo Bill, com Paul Newman, e Vincent e Théo, com Tim Roth como Van Gogh um ano antes do supervalorizado – mas também “maldito” Pialat.



Nenhum cineasta americano reconhecido foi tão anti-Hollywood e ao mesmo tempo seguiu tanto a tradição de antigos como William Wyler, John Huston e outros tantos que passavam pelos estilos mais variados - e até por isso não eram “autores” dentro dos cânones da “política de autor”. Mas que importam os rótulos e “políticas”? Antes de tudo foram cineastas. “Do ramo”. E Altman, um dos melhores.

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