Críticas


VOX LUX – O PREÇO DA FAMA

De: BRADY COBERT
Com: NATALIE PORTMAN, JUDE LAW, RAFFEY CASSIDY, STACEY MARTIN
31.03.2019
Por Maria Caú
Uma brilhante investigação sobre a perversidade da cultura da celebridade nos Estados Unidos.

No início dos anos 2000, um dia aparentemente comum num colégio após o recesso de Natal serve como cenário para mais um massacre escolar. Diversos estudantes são vitimados, e Celeste (Raffey Cassidy) sobrevive e se recupera aos poucos de uma lesão na coluna provocada por um tiro no pescoço. No memorial aos mortos, ela apresenta uma canção composta em parceria com a irmã mais velha. A música em questão, cuja letra bastante genérica tem pouco a ver com os eventos, se assemelhando mais a um título pop do fim dos anos 1990, algo que poderia ser ouvido nas vozes de Céline Dion ou Mariah Carey, se torna um sucesso e, aos catorze anos, Celeste vê sua trajetória trágica ser vendida como um produto de consumo de massas, alçando-a à fama com a ajuda do empresário (um excelente Jude Law, personificando bastante bem o cinismo próprio da profissão).

O filme se divide em duas metades, guiadas por uma estrutura literária em capítulos, fundada na narração extradiegética de Willem Dafoe (num desses muitos trabalhos de voz que nos fazem questionar a falta de reconhecimento desse tipo de atuação). A primeira vai do massacre até a escalada de Celeste no árido universo das celebridades, se estendendo por meses. A segunda, ao contrário, mostra um período de tempo de apenas algumas horas, em que, já adulta e renomada, ela se prepara para se apresentar frente a um público de 30 mil pessoas em sua cidade natal, quando é surpreendida pela notícia de que um grupo de terroristas acabara de cometer um atentado usando máscaras de um de seus videoclipes.

Esta última parte mostra uma mulher inteiramente corrompida moral e psicologicamente por ter crescido sob os holofotes e o escrutínio da nação, logo após um trauma que claramente ela não teve ferramentas para elaborar. Se na primeira metade a moça é doce, ingênua e sonhadora, aqui Celeste é ególatra, autoindulgente ao extremo e inteiramente dependente da reação e da atenção daqueles que a rodeiam. A atuação de Natalie Portman é precisa em sua afetação, edificando uma mulher que age como uma criança poderosa e mimada e hiper-reage a quaisquer mínimas cobranças ou contestações ao seu comportamento errático. Suas relações pessoais mais próximas, seja com a irmã, que cria sua filha adolescente, com a própria garota (interpretada agora por Raffey Cassidy, que mostra sua amplitude de repertório), com o empresário ou a assessora de impressa, não deixam dúvidas de que Celeste exige de todos à sua volta uma lealdade que beira a adoração, enquanto se exime de qualquer compromisso que não seja pautado pelo dinheiro.

Essa adoração é um reflexo daquela que recebe de seus fãs: apelidados de “anjos”, para combinar com seu nome divinal (e vale lembrar que Mariah Carey, por exemplo, chama seus fãs de lambs, ou cordeiros) e mostra sua incapacidade de estabelecer ligações reais com quem quer que seja. A sensação é de que Celeste não existe, que ela é em si uma projeção criada pelo mundo do espetáculo. A estrela não parece ter um único osso legítimo no esqueleto que a sustenta; o elemento mais autêntico que tem em si é a bala que permanece alojada em seu pescoço. Em realidade, a cantora usa golas altas e lenços sobre o local menos para esconder as pequenas marcas exteriores da tragédia e (muito) mais para manter na memória (a sua e a do público) esse episódio de martírio que a colocou num patamar heroico com o qual ela se regozija e sobre o qual construiu uma carreira.

Há uma clara diferença de ritmo entre as duas metades, com muitas quebras bruscas de cadência que emulam o caráter bipolar de Celeste, que mescla tentativas frustradas de candura com surtos de violência e autocomiseração. Também a estetização extrema, que extrapola a personagem e é parte estrutural da narrativa (dos créditos às transições, passando pelo tom de voz do narrador e pela fotografia que une planos-sequências realistas a episódios com atmosfera onírica e montagem videoclíptica) se liga perfeitamente ao tema tratado, incluindo o desfecho que mostra a apresentação bastante longa, enfadonha e vazia da popstar, permeada de declarações superficiais, músicas medíocres, coreografias derivativas e figurino pouco inspirado. Mesmo a voz de Celeste, que parecia bastante bela na juventude, soa aqui como uma gravação de computador destituída de vida, assim como parecem dolorosamente artificiais todos os seus movimentos. Ainda assim, a plateia delira. E este é justamente o ponto.

O diretor e roteirista Brady Corbet (que tem uma carreira extensa como ator, incluindo um papel dificílimo no excelente Mistérios da carne, de Gregg Araki) traça aqui uma investigação sobre a centralidade da cultura da celebridade no cenário dos Estados Unidos. De um lado, temos a fama das grandes estrelas, que precisam estar constantemente alimentando essa máquina faminta para não desaparecerem, tragadas pelo imediatismo das redes sociais ou esmaecidas pelo envelhecimento já aos trinta e poucos anos. De outro, temos a infâmia dos serial killers e assassinos de massa, com seu abjeto desejo de reconhecimento. Nessa chave, é importante perceber que as primeiras palavras do assassino na sequência inicial do filme são: “Meu nome é Cullen Active”, frase que a professora recebe com estranhamento, uma vez que já conhece o aluno. As redes sociais estão repletas de indivíduos que, incapazes de conquistar a fama mais tradicional, desejam recorrer a esse outro espectro e é por conta disso que, em um episódio recente, a primeira-ministra da Nova Zelândia se recusou a citar o nome de um assassino de massa. No fundo, ambas as notoriedades extremadas têm seu (diverso) grau de perversidade, como salientado na cena em que Celeste diz à filha que a irmã não conseguiu se afirmar como cantora por ter escrúpulos demais.

Se o filme não é categórico em sua tese sobre a questão, abrindo essa caixa de Pandora do imaginário americano sem se preocupar em estabelecer uma crítica sociológica mais detida, ele também não se exime, e em diversos momentos lança um olhar irônico para a própria estrutura narrativa. E é essa sofisticação escamoteada numa roupagem de show de arena que afirma a ousadia da espiral alucinantemente claustrofóbica (um túnel do qual não se pode sair, a grande metáfora visual do filme) que é o lugar da celebridade na cultura norte-americana.

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