Críticas


EM TRÂNSITO

De: CHRISTIAN PETZOLD
Com: FRANZ ROGOWSKI, PAULA BEER, GODEHARD GIESE
12.04.2019
Por Luiz Fernando Gallego
Fechando uma trilogia, este filme de Petzold atinge um raro patamar de grandeza humanística e cinematográfica.

O antigo tema de várias obras de ficção nas quais um personagem assume a identidade de outra pessoa é reciclado de forma bastante original no mais recente filme de Christian Petzold, Em trânsito.

O pano de fundo é a invasão nazista da França, ocorrida em maio de 1940, mas a ambientação em que vemos a história se desenvolver é atual, causando um forte sentimento de estranheza no espectador. Não se trata do “estranho familiar” stricto sensu (Das Unheimlich) como foi descrito por Freud para histórias assustadoras, mas podemos usar as mesmas palavras paradoxais entre si para descrever a impressão provocada pelas imagens, pois o ambiente é tão familiar como os dias de hoje, mas neste cenário desenrola-se uma trama que transcorre num passado já remoto e que, a rigor, já nos seria estranho. Mas...remoto? Estranho...?

A onda mais do que conservadora que se espraia em tantos países criando uma sensação de ameaça pertinente por reativar ideários fascistas deixou de ser estranha no Ocidente. Assim como a situação desoladora da onda de migrantes que tentam fugir de um destino ameaçador para outro, indefinido, e, às vezes, tão frustrante quanto mais horrível ainda, já se tornou uma dolorosa rotina que nos é familiar.

Alguns episódios do roteiro falam tanto do presente quanto de um passado que ressurge quando já se supunha que estivesse morto e enterrado, construindo um desconforto habilmente proposto pela narrativa escorreita da direção. E da edição enxuta de Bettina Böhler, habitual colaboradora de Petzold em seus filmes anteriores (Barbara, de 2012; Fênix, de 2014; e outros mais que não foram lançados comercialmente no Brasil). A trilha musical é de Stefan Will - que também musicou as obras precedentes. E o fotógrafo é o mesmo Hans Fromm destas outras realizações. Tal equipe, bem afinada com o cineasta, acrescenta pontos à concepção do diretor nestas obras - que mantêm algo em comum, ainda que, cada uma, com suas particularidades estilísticas de acordo com a história.

Repete-se, com outros matizes, a situação da médica 'Barbara', ansiosa para fugir da então Alemanha Oriental dominada pelo totalitarismo soviético. Assim como há a dissimulação sobre o retorno de uma pessoa, mas em situação inversa à de Fênix, no qual a mulher que retornava dos campos de concentração nazistas não era reconhecida nem pelo marido; aqui há uma mulher que aguarda a volta do marido que ela havia abandonado. Houve arrependimento? Ou há tão somente interesse num visto de saída para poder fugir das tropas alemãs que se aproximam? Só que outro homem está usando os documentos do esposo que é procurado desesperadamente por ela.

O romance original foi escrito em 1944 por Anna Seghers que fugiu de fato de Paris para Marselha quando o exército nazista invadiu a França e, de lá, foi para o México. A partir do livro que se baseava no que a escritora viu e viveu (*), Petzold escreveu seu roteiro com introdução do elemento diacrônico que lhe permite abordar, por exemplo, aspectos ligados a migrantes árabes de hoje numa história que se passa há quase oito décadas; e que traz um enredo pretérito para uma cidade francesa em vias de ser dominada pelos nazistas... mas no século XXI.

Tais anacronismos jamais se configuram como afetação ou gratuidade: o drama que se forma entre Georg (Franz Rogowski numa interpretação tão minimalista quanto emocionante à medida que tudo vai ficando mais complexo), a ambivalente Marie (Paula Beer, que vimos antes em Frantz, de François Ozon, 2014) e Richard (Godehard Giese) se desenrolaria com o mesmo pathos se fosse encenado em trajes e cenografia da época da Segunda Guerra, mas não há dúvida de que a estranheza de ver os personagens passando pelos mesmos percalços de antes nos dias de hoje torna tudo mais próximo de nossa sensibilidade, que, por vezes, terá sido anestesiada em relação àqueles fatos tão conhecidos e tão explorados no cinema. E ainda reacende a perplexidade para com os horrores atuais em relação aos quais estamos como que “acostumados” - pela banalização com que os noticiários repetidos nos anestesiam.

Em trânsito foi o filme que mais me impressionou dentre os que pude ver até agora este ano. E não tenho dúvida de que, depois de Barbara e Fenix, ao completar esta trilogia com situações afetivas sob sistemas totalitários, Petzold merece ocupar um lugar na lista de grandes cineastas humanistas e capazes de usar a linguagem cinematográfica de modo exemplar. Se nos anos 1960 era comum vermos filmes de Visconti, Bergman, Kurosawa e de outros, desde as mortes precoces de Tarkovski e de Kieslowski, poucos atingiram (se é que alguém atingiu) este patamar de grandeza humanística e cinematográfica.

(*) O livro foi traduzido e publicado no Brasil com o mesmo título do filme em português pela Editora Paz e Terra.

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