Críticas


AMANDA

De: MIKHAËL HERS
Com: VINCENT LACOST, ISAURE MULTRIER, STACY MARTIN, OPHÉLIA KOLB, GRETA SCACCHI
10.05.2019
Por Samantha Brasil
Trabalha questões como perda, ausência, luto e reconfigurações familiares sem se apoiar em soluções fáceis.

Amanda, dirigido por Mikhaël Hers e vencedor do prêmio Lanterna Mágica no último Festival de Veneza, empreende uma jornada intimista para abordar, de forma transversal, uma questão política que cada vez mais preocupa os países europeus: os “ataques terroristas”. O longa-metragem tem como cenografia uma cidade francesa e acompanha o cotidiano de um pequeno núcleo familiar formado por David (Vincent Lacost), a irmã Sandrine (Ophelia Kolb) e sua filha Amanda (Isaure Multrier), que dá título ao filme. David é um jovem que se dedica a receber turistas e ajudar a instalá-los num prédio de apartamentos em troca de moradia.

São muitos os elementos narrativos que aos poucos vão se descortinando para desvelar o argumento principal do roteiro escrito pelo próprio diretor ao lado da talentosíssima Maud Ameline (do ótimo Camille outra vez, 2012). Abrigar uma pessoa nem sempre é tarefa das mais fáceis. O protagonista se dá conta disso ao se deparar com uma realidade em que, aos 24 anos de idade, terá que mudar estruturalmente sua vida e toda a sua rotina por conta de uma perda inesperada. Apesar do ponto de partida de Amanda ser um acontecimento de proporções devastadoras em termos de geopolítica, é nas relações interpessoais que ele se desenvolve. O tema é recorrente na filmografia de Mikhaël Hers, já que em seu filme anterior Aquele sentimento de verão (Ce sentiment de l'été, 2015) uma morte trágica também une dois estranhos.

Cabe ressaltar que o luto é absorvido de diferentes formas pelos indivíduos. Curiosamente, estão em cartaz nos cinemas brasileiros três outros filmes que se dedicam a esse rito de passagem. Los Silencios (Beatriz Seigner) e A sombra do pai (Grabriela Amaral Almeida), assim como Amanda, partem da experiência particular, intimista, do indivíduo, para trabalhar o tema da perda, da reinvenção pessoal, da resiliência e da readaptação através do olhar e da percepção de uma criança. De diferentes formas, linguagens e estilos, é na infância que o tema se potencializa nesses três filmes. Seja através da simplicidade para enxergar as coisas da vida, ou através de elementos fantásticos para subverter essa realidade, as meninas protagonistas, de alguma forma, precisam encontrar meios para seguir adiante apesar da ausência de entes familiares. Nesses três filmes, as perdas têm conexão direta com aspectos macropolíticos de suas sociedades/culturas. Já em uma outra vertente, o filme que completa esse grupo e também se dedica ao tema acaba de estrear: é a nova versão de Cemitério maldito (Kevin Kolsch e Dennis Widmyer), adaptação de um dos mais célebres livros de Stephen King, que tem no luto seu eixo central.

Ultrapassados esses comentários mais abrangentes, vale destacar dois pontos altos do filme. A direção de atores é notável, visto que dirigir crianças nem sempre é tarefa das mais simples. Isaure Multrier entrega uma atuação digna de nota, pois consegue flutuar de momentos de extrema fragilidade a outros de uma melancolia visceral, sem jamais incorrer num melodrama piegas ou que se pretende universalista. Claro que esse aspecto só pode ser ressaltado se o conjugarmos a um roteiro sem pontas soltas, aliado a uma montagem que privilegia os atores em cena. Da mesma forma, o jovem desajeitado e desatento interpretado por Vincent Lacost, precisa dar lugar às angústias e decisões que o rapaz irá vivenciar após o trágico incidente. Some-se ainda a esses aspectos técnicos uma trilha sonora elegante e sutil que emoldura algumas cenas sem jamais se sobrepor a elas.

O evento que acomete a reviravolta do roteiro na primeira terça parte do filme, não o encapsula ou delimita, fato que deixa a narrativa ainda mais instigante. Alguns segredos que envolvem o núcleo familiar que protagoniza o longa-metragem vão dando camadas que não permitem que ele caia na facilidade de se encaixar em mais um filme-catástrofe. Outro aspecto a ser ressaltado é a opção pelo uso de uma imagem granulada da película 16mm a fim de conferir a sensação de uma outra temporalidade que não a do presente. Devido ao evento traumático que vai interferir diretamente na vida dos personagens, o tempo fica suspenso, para que algumas dívidas morais do passado se reconfigurem nessa nova dinâmica que virá a se definir.

Um debate sobre paternidade se coloca de forma oblíqua, mas de maneira muito original e inventiva, na qual o protagonista se despe completamente dos padrões de masculinidades culturalmente esperados e se permite experimentar sensações e emoções com a fragilidade que a situação constrói. A expressão norte-americana “Elvis deixou o recinto” (Elvis has left the building, no original), que no início da trama reforça um laço afetivo e de cumplicidade entre a mãe professora de inglês e a filha curiosa, não poderia ser mais oportuna para o desfecho lírico do filme, pois remete ao encerramento de um ciclo para o recomeço de outro.

Apesar da escolha por uma família burguesa de classe média de uma cidade qualquer francesa e do fato de a câmera passear por lugares pouco óbvios em relação ao que se espera em um filme com inúmeras tomadas na rua (com passeios em parques e de bicicleta), o ponto de partida que estrutura o argumento pode abrir margem para uma certa vilanização dos imigrantes, já que a questão do “ataque terrorista” só está na trama como artifício narrativo gerador da catarse dos personagens. Esse talvez seja o único ponto dissonante de um filme que evolui de forma extremamente harmoniosa ao trabalhar questões como perda, ausência, luto e novas reconfigurações familiares sem se apoiar em soluções fáceis.

Samantha Brasil é antropóloga, curadora e crítica de cinema

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