Críticas


CASSINO ROYALE

De: MARTIN CAMPBELL
Com: DANIEL CRAIG, EVA GREEN, JUDI DENCH
17.12.2006
Por Nelson Hoineff
BOND E A AUTORIA DO PRODUTOR

Em 1953, o produtor Charles K. Feldman comprou de Ian Fleming os direitos para filmar Casino Royale, sua primeira novela de espionagem. Feldman era o produtor de cineastas como Billy Wilder, Sidney Lumet e Elia Kazan. Naquela época pouca gente no mundo tinha ouvido falar de um personagem que levava uma vida de playboy, matava comunistas a serviço da coroa britânica e atendia pelo nome de James Bond.



Quando Feldman conseguiu fazer seu filme, 14 anos depois, o mundo já sabia quem era Bond. Tinha visto o personagem na pele de um quase desconhecido ator escocês, Sean Connery, nada menos de seis vezes, desde O Satânico Dr. No, em 1962. Títulos como Moscou Contra 007 (1963) ou Goldfinger (1964) haviam mostrado a milhões de pessoas que Sean Connery era James Bond - e que James Bond era Sean Connery.



Por trás de todos esses filmes estava uma dupla de produtores, Albert Broccoli e Harry Saltzman, que haviam transformado os livros de Fleming e desenvolvido sobre eles um conceito. Um conceito tão bom e tão sólido que marcaria todo o cinema de espetáculo que se faria desde então. Os filmes de Broccoli e Saltzman eram conduzidos por grandes diretores de filmes de ação, como Terence Young e Guy Hamilton, mas a dupla de produtores era na verdade o seu verdadeiro autor. Os ingredientes eram tomados de Fleming de forma literal: locações glamourosas, mulheres espetaculares, ênfase na guerra fria, alta tecnologia e muita, mas muita ação.



Broccoli e Saltzman acrescentaram a isso um fino humor. Tão fino, aliás, que nem sempre era lido como tal. O espaço de Bond tornara-se também o do implausível. O realista juntava-se ao alegórico, bastante improvável para um cinema de massa. E ainda por cima em torno de um personagem amoral e machista. Por conta também da guerra fria cultural, os filmes de James Bond eram tão apreciados quanto estigmatizados.



Feldman havia perdido o timing. Os produtores que chegaram depois dele não só já tinham tirado o agente 007 do anonimato, como o haviam transformado numa marca poderosíssima, que estava para a indústria do cinema assim como a Coca-Cola estava para a indústria de refrigerantes.



O produtor de Um Bonde Chamado Desejo rodou seu Casino Royale como uma radical aposta na transformação do que o cinema havia sedimentado de Bond. Sua proposta era fazer dele um grande evento. À sua maneira, o filme de 1967 pode ser visto como o mais insólito e o mais ousado de todos os da série da qual era o único outsider – e também o mais caótico.



Foram nada menos de cinco diretores. Nomes como John Huston, Ken Hughes, Robert Parrish e também Joseph McGrath e Val Guest. A opção de Feldman era incorporar o humor nonsense britânico da época que tinha em Richard Lester (Os Reis do Iê-Iê-Iê, Help!) o seu grande baluarte e que bem mais tarde resultaria em Monty Python e os respectivos espelhos. Um humor alguns pontos mais escrachado que o de Broccoli e Saltzman – e certamente Fleming.



David Niven era James Bond, que também era representado por um inesperado Peter Sellers, o que em si já era uma declaração de intenções. Ursula Andress, monumental saindo do mar em Dr. No, era resgatada ali para se transformar na traiçoeira namorada Vesper. O arqui-malfeitor Le Chiffre era feito por ninguém menos que Orson Welles. E isso era apenas o início. Woody Allen fazia um Noah impagável e Casino Royale tinha ainda Deborah Kerr, William Holden, Charles Boyer, o próprio John Huston, Jean-Paul Belmondo, George Raft e Barbara Bouchet, entre muitos outros. Elencos iguais já haviam sido montados. Melhores, dificilmente. Naquele momento, contudo, não era isso que o mundo esperava de Bond.



Casino Royale foi um desastre comercial e deixou claro que o cinema já havia desenhado para sempre a imagem do agente secreto. Uma imagem construida por Broccoli e Saltzman, que vendeu sua parte da sociedade após nove anos. Até morrer, em 1996, Broccoli produziu todos os outros filmes de 007. A cada um injetava mais humor. Os diálogos se sofisticavam. Suas seqüências iniciais entravam para as antologias, enquanto a célebre abertura de Maurice Binder, assim como o tema de Monty Norman, se perenizavam. Como seu herói, a série respirava o valor da tradição.



A nova versão de Casino Royale é produzida por Barbara Broccoli, filha de Albert, que desde 1987 trabalhava com o pai nos filmes de James Bond. Este é um típico produto dos Broccoli. Um verdadeiro filme de produtor. A melhor homenagem que alguém poderia prestar a Albert Broccoli porque o novo Casino Royale é forjado à sua imagem e semelhança.



Como filme de ação, ele não deixa muito espaço para outros filmes avançarem. Há quem atribua isso à escalação do elenco - em particular, é claro, de Daniel Craig. Craig não é o gentleman a que a geração de Pierce Brosnan e Roger Moore se acostumou e não há como extrair humor de seu jeito frio. No entanto ele tem a exata dimensão – e vigor – do personagem. A escalação do elenco – onde não se pode deixar de notar o excelente dinamarquês Mads Mikkelson como Le Chiffre, agora transformado no banqueiro do terrorismo internacional - é apenas parte dos acertos. O diretor Martin Campbell, por exemplo, já há algum tempo é conhecido como um dos maiores criadores de caos da indústria. Mas sua precisão dificilmente poderia ser antecipada pelos seus filmes de Zorro.



Cada uma das seqüências que Campbell edita é – para usar um jargão da crítica americana – de tirar o fôlego. Bond vai para Londres, Veneza, Montenegro. Suas passagens em Montenegro são inesquecíveis, praticamente a cada plano. Eles foram rodados em Karlovy Vary, Republica Tcheca, palco de um dos mais tradicionais festivais de cinema do mundo, mas se Montenegro é aquilo quero ir agora para lá e não voltar jamais. Por que o Pão de Açúcar ou as Cataratas do Iguaçu nunca foram tão bem filmados quanto em Moonraker?



Porque havia um conceito - e um produtor para defendê-lo. Neste conceito, Bond é o que Kracauer tratava de objeto cinemático. Tem que ser ajustado como uma fina engrenagem – planos, efeitos, locações, diálogos, tudo deve ser preciso como uma bomba feita para detonar na hora certa.



Se Bond é em si um objeto cinemático, a formulação de Broccoli sobre ele produz a essência de um modelo de cinema. Um cinema de sonho, de transporte, de mágica, de sedução. Casino Royale leva esse modelo às últimas conseqüências. Lembra o que o cinema é capaz de fazer e o faz com maestria. Revitaliza uma tradição que se estende por mais de 20 filmes. No âmbito desse modelo, é cinema no que ele tem de melhor.





CASSINO ROYALE (CASINO ROYALE)

EUA/Inglaterra/República Tcheca, 2006

Direção: MARTIN CAMPBELL

Produção: BARBARA BROCCOLI

Roteiro: NEAL PURVIS, ROBERT WADE, PAUL HIGGIS, baseado na novela de Ian Fleming

Fotografia: PHIL MEHEUX

Elenco: DANIEL CRAIG, EVA GREEN, JUDI DENCH, JEFREY WRIGHT, MADS MIKKELSEN, GIANCARLO GIANNINI

Duração: 145 minutos

Site oficial no Brasil: clique aqui

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