Críticas


SEGREDO DE BEETHOVEN, O

De: AGNIESZKA HOLLAND
Com: ED HARRIS, DIANE KRUGER
24.12.2006
Por Luiz Fernando Gallego
ELA DESAFINOU

Em uma cena de O Segredo de Beethoven (título brasileiro sem-noção), há um diálogo construído com o evidente propósito de não deixar dúvidas quanto ao gênio irascível do compositor, característica que se acentuava à medida em que perdia a audição. É quando ele ironiza a personagem que está fazendo cópias das partituras para a estréia da revolucionária Nona Sinfonia: sarcasticamente, ele diz que ela deve adorar a Sonata ao Luar - como se o músico menosprezasse esta composição por ter se tornado “popular” e tipicamente “romântica” – entendendo-se os termos com conotação unicamente pejorativa.



Apesar de a copista demonstrar excepcional qualidade de ouvinte, capaz de captar de saída o que outros ainda estariam estranhando na estrutura inovadora da sinfonia final do mestre, ela está ainda perplexa com a Grande Fuga, uma de suas derradeiras obras para quarteto de cordas, momento emblemático de uma fase em que ele transgredia ainda mais radicalmente as convenções musicais da época - tal como nas últimas sonatas para piano e em outras modalidades que anteciparam em muitos anos a chamada “música moderna”. É como se a caricatura de Beethoven que se vê neste filme estivesse renegando sua obra anterior por ser menos ousada do que suas experiências de verdadeira vanguarda dos últimos anos de vida.



Deixe-se de lado o fato de que a Sonata de número 14 para piano só veio a ser apelidada de Ao luar muitos anos depois de sua morte e que, portanto, o compositor nunca a denominaria deste modo; e esqueçamos que a personagem da copista esperta é apenas ficcional. Não se exige, desde Shakespeare – e mesmo antes, de Homero - que obras de ficção inspiradas na vida de figuras históricas sejam fiéis tratados biográficos: aproveitam-se aspectos (nem sempre) grandiosos de vidas famosas para demonstrar, através de criatividade, transformações artísitcas e originalidade, alguns aspectos cruciais das profundezas da alma humana - o que não é o caso deste filme. É notório que muitos amantes de Mozart ainda questionam o que Peter Shaffer fez com o personagem de Amadeus ao enfatizar de forma distorcida o que seria um aspecto parcial da personalidade real do músico - mas a peça filmada por Milos Forman deve ser vista como uma ficção que se utilizava de clichês, anedotas e mitos para oferecer um bom tratado sobre a inveja humana através do personagem de Salieri, igualmente muito modificado em relação ao que teria sido o real “rival” de Mozart.



A questão com o fraco roteiro de Copying Beethoven (título original) é que, conforme o exemplo dado acima (e há vários outros), o filme, por um lado, pretenda uma imagem ideal de identificação intelectual com o lado “vanguardista” e “incompreendido” do gênio artístico (que ganha “direito” de ser também irascível) e tente seduzir o espectador para que se identifique com a jovem que tem a intuição de perceber o caráter excepcional e antecipador das experiências harmônicas de Beethoven – mesmo que ainda não consiga apreciá-las completamente. Mas o paradoxo é que, por outro lado, o que se vê na tela é a repetição – apenas algo atualizada para o público de hoje – dos mais antigos clichês cinematográficos sobre “gênios incompreendidos”. Nesse sentido, o filme pouco difere de tantas cinebiografias bobinhas de décadas atrás, quase todas com um “romantismo” kitsch e meloso, categorias que não são intrínsecas da “Sonata Ao Luar” – o que é totalmente independente de sua banalização a partir da popularidade que mereceu. E popularidade não é defeito, claro – mas o filme acaba quase sugerindo isso.



Outro exemplo de pseudo-elitismo do enredo é quando um personagem idoso e “conservador” dedilha a conhecida e sempre encantadora bagatelle “Pour Élise”, dizendo que “isso é que era Beethoven” (ou seja: antes das dissonâncias ainda modernas de suas obras finais).



De pouco vai adiantar a fotografia que tenta (não sem sucesso, diga-se) reproduzir tonalidades e cores de pinturas da época. Ou a tentativa do grande ator que é Ed Harris em dar vida ao personagem principal roteirizado de forma tão estereotipada e reducionista. Ou a boa interpretação da bonita Diane Kruger - em relação à sua insípida “Helena” no desastre que foi Tróia, de Wolfgang Petersen. Ou a montagem de cenas ao ritmo acelerado no final da “Ode a Alegria” que encerra a “Nona”. E não serviriam mesmo para nada cópias descaradas de cenas de Amadeus, como a do compositor agonizante ditando notas musicais para outro personagem que “entende” a “transcendência” daquele momento.



Infelizmente, os esforços e capricho visual da mais freqüentemente correta (ainda que irregular) cineasta Agnieszka Holland não foram suficientes para afastar este seu filme do rés-do-chão de outros tantos similares que banalizaram a grandeza de compositores de exceção em filmes corriqueiros que parecem dizer que tais mestres da música foram grandes porque sofreram (surdez, miséria, tuberculose, etc.) ou porque não foram compreendidos pelo público “tolo” dos períodos históricos em que viveram.



Claro que há um aggiornamento ao colocar, no início dos anos 1800, uma mulher como personagem ficcional que capta a genialidade incompreendida do grande mestre; assim como outras firulas do roteiro que tenta uma aproximação mais sintonizada com o mundo atual. Mas, paradoxalmente, o filme acaba parecendo produto de quem só aprecia mesmo o aspecto mais “fácil” e “romântico” da explorada “Pour Élise” ou das Sonatas para piano de Beethoven anteriores às cinco últimas – e que não perdem absolutamente seu valor próprio em relação às mais ousadas - como é o caso das citadas e sempre maravilhosas Waldstein, Appassionata e Ao Luar.



Nem parece que a diretora foi co-roteirista de Kieslowski na Trilogia das Cores e que trabalhou com Andrzej Wajda em Sem Anestesia. Ou que já realizou filmes próprios mais interessantes e instigantes como Filhos da Guerra, Olivier, Olivier, A Herdeira (uma boa nova versão de Washington Square, o romance de Henry James de onde foi extraído o clássico de William Wyler em 1949, Tarde Demais) – além de dois filmes que discutiam de forma sensível questões delicadas como eventos maravilhosos entendidos como possíveis “milagres”, como nos mais recentes O Terceiro Milagre e Voltando para Casa.



Desta vez, é como se ela tivesse executado a Sonata ao Luar com aspirações stravinskianas, mas com “alma” de “música de elevador”. Desafinou.





# O SEGREDO DE BEETHOVEN (COPYING BEETHOVEN)

EUA / Alemanha, 2006

Direção: AGNIESZKA HOLLAND

Roteiro: STEPHEN J. RIVELE e CHRISTOPHER WILKINSON

Fotografia: ASHLEY ROWE

Montagem: ALEX MACKIE

Música: LUDWIG VAN BEETHOVEN

Direção de Arte: PAUL GHIRARDANI e LORAND JAVOR

Elenco: ED HARRIS, DIANE KRUGER, RALPH RIACH, JOE ANDERSON, MATTHEW GOODE.

Duração: 104 minutos

Site oficial: clique aqui

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