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TARANTINO EM HOLLYWOOD ‘1969

15.08.2019
Por Luiz Fernando Gallego
Crítico que não é fã incondicional de Tarantino curte o mais recente filme do diretor.

Não demorou muito para percebermos que o principal assunto dos filmes de Tarantino eram... os filmes. O site IMDb, por exemplo, lista nada menos do que sessenta e seis referências cinematográficas no primeiro longa do diretor, Cães de Aluguel (1992), indo de A Família Dó-Ré-Mi a Laranja Mecânica passando por Godard e O Mágico de Oz. No filme seguinte, Palma de Ouro em Cannes e diversos prêmios de melhor roteiro, incluindo o Oscar na categoria, as referências chegam a quase 160 filmes dos mais diversos gêneros. O público adorou Pulp Fiction (1994) e a crítica, em geral, se rendeu à verve e ao “estilo” tarantinesco de mesclar violência exacerbada, quase caricatural, com humor sarcástico. Conversas de personagens, meio tolas e meio espertíssimas, à margem da ação principal também viraram uma espécie de marca registrada do diretor, dando origem a cópias em filmes assinados por outros realizadores, raramente tão interessantes quanto e quase sempre frustrantes.

Depois de Jackie Brown (1997), ainda melhor do que os anteriores e seu melhor filme para muita gente - incluindo quem assina este texto - Tarantino parece ter caído na maldição de “autor” - tal como definiu Bergman citando o exemplo de Fellini quando passou a fazer filmes “de Fellini”, ou seja, aprisionado a formatos que se transformaram em clichês “fellinianos” e auto-citações sem a mesma verve original de quando filmava sem ter que corresponder a nenhum modelo, ainda que fosse o próprio modelo com marcas de sua autoria indubitável e facilmente percebida em uma série de grandes filmes. Bergman mesmo acusou-se de ter feito alguns de seus filmes refletindo mais o que se esperava dele; ou o que ele mesmo passou a esperar de como deveria ser um filme seu. Ou seja, um “estilo” que se estabeleceu gradualmente transformado em "fôrma" em vez de se deixar aberto a outras formas de traduzir suas ideias em uma estética pessoal que pôde ser apreendida numa observação verticalizada do que havia realizado até então. Para os fãs de Tarantino, entretanto, não havia o menor problema nos exageros repetitivos de Kill Bill: volume 1 (2003) e nem mesmo no descartável À Prova da Morte (2007). Seus exegetas também ignoraram as questões levantadas por um crítico brasileiro e grande pesquisador do cinema realizado sob o nazismo que denunciou equívocos importantes em Bastardos Inglórios (2009) - e até mesmo apontou uma espécie de “nazificação” no comportamento de personagens judeus que, na ficção delirante do autor, passaram a usar recursos próprios da barbárie nazista para uma vingança acontecida na reescrita da história real, um escapismo fantasiado, ainda que dirigido com a maestria de um excelente artesão. (O texto que lamenta este filme está na seção “Convidados” deste site).

Um novo Oscar de roteiro original para Django Livre (2012) não comoveu quem não se deixou encantar pelas “surpresas” em busca do insólito que soavam repetições do cineasta tentando uma originalidade descabelada que acabava por ser nem tão original para quem conhecia seus filmes. E o mesmo se daria em Oito Odiados, apesar do efeito cômico de mesclar uma trama com ares de “whodunit” à Agatha Christie com um western cuja narrativa dava prioridade a um ambiente fechado.

Dito isto, pode ser que a mais recente realização de Tarantino se transforme em um filme mais apreciado por quem não for fã do diretor, talvez até mesmo frustrando um pouco os que esperam mais do mesmo como vêm sendo seus filmes há tempos. Se o cinema é sua praia, nada melhor do que falar abertamente sobre filmes em vez de referenciá-los de tal modo a que só cinéfilos radicais identificam as infindáveis citações. Em Era uma vez em...Hollywood a abordagem se mostra quase terna, especialmente para com a figura recriada de Sahron Tate (na pele de Margot Robbie) que - quem não sabe? – foi vítima de um bárbaro assassinato, juntamente com mais alguns amigos, na mesma semana em que outra casa da região teve pessoas mortas da mesma forma brutal no que ficou conhecido como “Caso Tate-LaBianca” (para englobar o casal LaBianca assassinado na noite seguinte ao do massacre na casa de Roman Polanski, marido da atriz, ausente na noite do crime).

Em vez de resgatar atores ou atrizes em fase de ostracismo pela indústria e pelo público, desta vez, de modo bastante simpático, Tarantino se dedica a dois personagens ficcionais, um astro de cinema e TV, ainda relativamente jovem, mas em franca decadência no ano de 1969, e seu dublê para cenas perigosas, também um amigão para todas as situações, A dupla é interpretada de modo que despertará empatia no público por Brad Pitt (o stunt man) e por Leonardo DiCaprio (como o ator) em ótima composição e excelentes cenas. Em pequenas aparições Al Pacino, Damian Lewis (como Steve McQueen) e a menina Julia Butters (no melhor momento de DiCaprio) gratificam amplamente o espectador. E Margaret Qualley como uma hippie chamada apenas de Pussycat talvez venha a receber uma indicação ao Oscar de atriz coadjuvante. Merece prêmios.

O filme poderia não precisar das duas horas e quarenta minutos de projeção, alguma edição não faria mal, mas não cansa e mantém o interesse o tempo todo sem parecer excessivo como Django Livre com sua longuíssima metragem (de apenas cinco minutos a mais do que este novo filme, mas que trouxe quase um anticlímax no seu “terceiro ato”). O esperado momento de violência habitual parece mais uma caricatura de velhos "desenhos animados" e talvez incomode menos quem não curtiu os sopapos sangrentos que Jeniffer Jason Leigh levou em Os Oito Odiados.

A ironia também se faz presente em vários momentos, inclusive no desfecho, mostrando que, quando quer, Tarantino não precisa de violência gráfica para aludir à violência real fora das telas. Telas em que ele parece gostar de viver como se fosse quase uma versão hardcore da Cecília de A Rosa Púrpura do Cairo. Como sempre faz, "sua" Los Angeles e "sua" Hollywood são recriadas com um misto de realismo (brilhante a direção de arte) e fantasia, mas, desta vez, o amor pelo cinema fez Tarantino se sair tão bem como não acontecia há algum tempo.

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