Críticas


DOSSIÊ TARANTINO: PULP FICTION (1994)

15.08.2019
Por Maria Caú
Como Pulp Fiction (1994) moldou a experiência da cinefilia para a geração 80: um relato histórico-afetivo

Na minha trajetória com a crítica cinematográfica, poucas vezes me desvencilhei de uma (tentativa de) distanciamento, abraçando sem medo o pronome eu. Mas a memória emocional de Pulp Fiction e do que o filme significou para a geração de cinéfilos da qual faço parte me obriga a caminhar entre o resgate de sua importância para a história do cinema contemporâneo e a minha memória afetiva. E, quem sabe, pensar como a construção das novas historiografias do cinema pode também ser perpassada pela afetividade. Quando Tarantino redefinia as expectativas do gênero de filme de gângster (o longa foi lançado no Brasil em fevereiro de 1995), eu tinha 12 anos, havia acabado de ganhar um videocassete (a família ganhou o aparelho, mas eu o considerava de fato meu) e tinha um caderno em que colava anúncios de cinema que recortava de revistas como a Programa, anotando ao lado das imagens os títulos dos filmes ou nomes de diretores. Lembro-me claramente de me sentir atraída pelo cartaz em miniatura daquele filme de estética tão diferente do que eu estava acostumada e com o nome intrigante de Pulp Fiction: Tempo de violência. A classificação etária da obra, com sua famosa cena de overdose, confrontos sangrentos e até uma sequência de estupro masculino, era 18 anos. Além disso, eu vivia numa cidade cuja única sala de cinema intermitente (um cinema grande de rua, mal-conservado) havia fechado definitivamente. A vivência da cinefilia antes da era digital era, necessariamente, a da ansiedade da espera.

Eu veria o filme anos mais tarde, por volta dos meus 14 ou 15 anos, pouco depois de ele chegar à locadora na qual eu passava tardes inteiras (e que não tinha restrições com a minha idade). Nessa época, em especial em cidades menores, os filmes levavam anos, ou pelo menos muitos meses, para serem lançados em videocassete. Assistir ao filme me impressionou, e me fez rever Cães de aluguel, que havia escapado completamente à minha compreensão alguns anos antes, numa sessão noturna familiar que deixou meus pais confusos ou estarrecidos, não sei bem definir. Nesse contexto, Pulp Fiction se tornou talvez o primeiro filme da minha formação como alguém que iria se dedicar a estudar o cinema: ele me intrigou, chacoalhou as minhas expectativas narrativas e linguísticas e me fez buscar ferramentas que me ajudassem a destrinchá-lo. A estrutura não linear (à época ainda bastante incomum num cinema mais comercial), unida à roupagem cartunesca, repleta de canções pop ressignificadas, o ritmo inconstante, com diálogos longos e saborosos justapostos a episódios de explosões de violência súbita e inesperada construíam um universo charmoso e intrigante em que a brusca ruptura (em termos formais e no que diz respeito aos personagens) era uma constante. Temos o mafioso que se arrepende porque as balas não o tocaram, o lutador que tem pressa (mas é atrasado por um relógio), o casal de assaltantes que age por impulso. Os personagens estão sempre em fuga, em espelhamento com uma narrativa de ação que foge às convenções dos pontos de virada tradicionais (ou se recusa a sublinhar os momentos em que poderia ser costurada linearmente, ainda que eles sejam identificáveis para um olhar mais atento).

Há também pausas para dança, para falas que, diferentemente dos filmes verborrágicos europeus ou americanos (Bergman, Antonioni, Woody Allen) não se detêm sobre grandes questões da vida ou dos relacionamentos humanos, não tocam as raias da filosofia, mas sim se abrem para dissecar a banalidade do cotidiano com humor afiado e referências da cultura de massas. Vamos do Bic Mac a Madonna, passando pela ética do consumo de carne de porco ou pelo preço justo para um milk-shake. “Na vida as pessoas não conversam sobre o plot”, diz Tarantino, sem ignorar que seus personagens muitas vezes elaboram sobre questões mais profundas na voracidade de um diálogo que evita atirar sobre elas à queima-roupa.

Na cartela que abre o filme, lemos o significado de pulp: 1) massa informe, macia e úmida de matéria; 2) revista ou livro contendo um assunto lúrido e impresso caracteristicamente em papel inacabado e de má qualidade. Essas definições servem não só como referências ao conteúdo (as revistas de gângster que ele lera), mas à ossatura do filme, que não pretende seguir uma formalidade estética convencional ou se filiar a um gênero ou modelo narrativo. De fato, eis o trunfo: Pulp Fiction parecia à época que nos chegou dirigido ao mesmo tempo por um mestre habilidoso, com total domínio das ferramentas do cinema, e por um cara comum, com quem você poderia beber numa mesa de boteco. Era criativo o suficiente e imperfeito (ou sujo, ou “informe”) o suficiente para fundar uma nova relação espectador-autor, e talvez até um novo conceito de autoria, em que a releitura rasgada regada com um molho fresco se tornara a marca de um estilo, estilo esse que é uma ode ao cinema como forma de linguagem. Um funcionário de uma videolocadora apaixonado, um estudioso do cinema (inclusive daquele cinema considerado indigno de estudo ou menor), alguém que é um caldeirão de referências e sabe articulá-las como quem domina uma língua e é capaz de criar orações justapondo sintagmas que não costumam convergir. Alguém em relação a quem a identificação não partia do lugar do pedestal ocupado pelos grandes nomes do cinema. Que fazia um cinema para ser discutido academicamente E citado jocosamente entre amigos um pouco bêbados. Um filme que nos convidava a rebobinar obsessivamente a fita quando rever imediatamente ainda não era um hábito cultural como é hoje, na facilidade das novas tecnologias, e elaborar teorias: o que afinal vai na mala de Marcellus Wallace? 25 anos depois, o legado deste filme, que recebeu a Palma de Ouro em Cannes, é inegável – e revê-lo mais uma vez, um prazer.

Um tanto intencionalmente, Tarantino acabou reorganizando a cinefilia da geração dos anos 1980 (uma cinefilia ainda dominada por homens brancos heterossexuais, devemos dizer). Mas, se o superamos aqui e ali, o problematizamos ou renegamos, se fomos em busca de outras cinematografias possíveis para nelas depositar nossas afetividades, ainda assim, quase todos nós repetimos, por entre dentes (porque quem não reviu Pulp Fiction incontáveis vezes não viu Pulp Fiction), aquelas falas quando as ouvimos novamente. “Zed´s dead, baby, Zed´s dead”.

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