Críticas


DOSSIÊ TARANTINO: KILL BILL vols: 1 & 2 (2003-2004)

15.08.2019
Por Clara Ferrer
A poderosa fúria da Noiva criada por Tarantino e Thurman mantém o quarto filme do diretor mais atual do que nunca.

Início dos anos 2000. A internet se expandia em saltos exponenciais, revelando todo o seu potencial para o infinito – subitamente, todas as informações sobre tudo que já foi feito pelo homem pareciam estar à distância de um único clique. As redes sociais desabrochavam, originando uma nova forma de interação entre o entretenimento, seu público e seus criadores. E no outro lado do mundo, a maior potência mundial travava uma guerra tão absurda quanto distante. Era o terreno perfeito para a mistura delirante de humor, violência hiperestilizada e metalinguagem que caracteriza o marcante estilo de Quentin Tarantino, e é nesse contexto que os dois volumes de Kill Bill são lançados e imediatamente alçados ao incontestável status de ícones da sua era, inspirando uma onda colossal de filmes, séries, videoclipes e fantasias de Halloween.

Hoje, mais de quinze anos depois, Kill Bill se mantém atual. Num contexto cultural muito mais complexo, pesado e polarizado, sua relevância e ressonância são guiadas pela monumental fúria feminina que Uma Thurman encarna em sua performance como Beatrix Kiddo. A inabalável certeza, confiança e competência com que a personagem executa sua jornada é inspiradora, assim como as mil identidades que ela atravessa no percurso, com direito a um “final feliz” em que Kiddo descobre uma nova razão para viver, numa lição extasiante sobre transformação, reinvenção e a possibilidade de recomeçar. Pois, apesar de sua constante obsessão com o tema da vingança, o que Tarantino nos deixa mais claro em sua quarta obra é a sua futilidade: no fundo, todos os personagens do filme têm um motivo para buscar retaliação, e ao permitir que ela se transforme na força motriz de suas vidas eles se lançam num ciclo de destruição, crueldade e sofrimento que não tem fim.

Em diversas entrevistas, Tarantino afirma que considera os dois volumes de Kill Bill como um filme só, escrito e filmado como uma obra única – a divisão em duas partes, que sucessos anteriores como Matrix e O senhor dos anéis tinham mostrado ser possível, teria sido sugerida pelo nefasto produtor Harvey Weinstein diante da inesperada magnitude que o projeto assumiu: tendo começado como uma mera brincadeira para dissolver a obsessão que o projeto de Bastardos inglórios estava se tornando, Kill Bill foi crescendo até se tornar um monstro de quatro horas de duração.

A estrutura do filme, dividido em dez capítulos com propostas estéticas muito diferenciadas, homenageando gêneros que vão da Nouvelle Vague francesa à animação japonesa, tornou a divisão possível, mas não sem alguns problemas. O primeiro volume, que concentra a maior parte da ação na história da Noiva, é uma assumida ostentação de todo o poder, visão e competência da direção de Tarantino, mas nos oferece muito pouco em termos de substância. É notável que um filme de Tarantino, até então tão conhecido pelos seus diálogos rocambolescos, tenha tão poucos deles, e ao fim das suas duas horas de duração, a Noiva, seus inimigos e todo o universo habitado por eles ainda são completamente unidimensionais – tudo o que temos deles é a sua superfície, sua mais primordial essência, cuja simplicidade intencional não deixa de ser sedutora e catártica.

Apesar de um pouco desconjuntado e menos repleto de cenas de ação – a luta brutal entre a Noiva e Elle Driver é um dos pontos altos do filme – o segundo volume de Kill Bill nos ganha ao colocar em seu centro a complexa relação entre a protagonista e o onipresente Bill, interpretado com envolvente suavidade por David Carradine. Curiosamente, o homem que destruiu a vida de Beatrix Kiddo nunca chega a ser verdadeiramente questionado e explicado no confronto final entre os dois. Mas ao aplicar um convenientemente poderoso soro da verdade em Kiddo, em mais uma casualmente cruel violação, Bill nos ajuda a conhecer, entender e simpatizar mais profundamente com a mulher que acompanhamos ao longo de quatro horas de filme.

No fim, a Noiva conclui sua missão assassina, mas, se a capacidade e o desejo de matar são realmente sua verdadeira natureza, como Bill sugere, a nova motivação por trás dessa capacidade (proteger, amar, construir) faz toda a diferença. E quanto à vingança, os ainda frequentes rumores sobre a possível realização de um terceiro volume de Kill Bill, focado na filha de uma das mulheres que a Noiva assassina em sua jornada, confirmam: ela nunca acaba.

Clara Ferrer é formada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense. Diretora, roteirista e produtora, é autora do livro "Amores monstruosos" (Ed. Garamond), contemplado com menção honrosa pelo I Prêmio Rio de Literatura.



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