Críticas


BACURAU

De: KLEBER MENDONÇA FILHO e JULIANO DORNELLES
Com: UDO KIER, SONIA BRAGA, KARINE TELES
29.08.2019
Por Luiz Fernando Gallego
Um ideário louvável não faz, por si só, um bom roteiro

O passado de crítico de cinema do diretor Kleber Mendonça Filho se reflete na mise-en-scène caprichada da sua nova realização, desta vez em parceria com Juliano Dornelles, sendo que ambos assinam o roteiro – que é, infelizmente, bastante insatisfatório, apesar de podermos concordar com todas as “mensagens” que o filme quer passar, deixando-as bem claras, mas de modo maniqueísta e proselitista, enquanto outros detalhes ficam inexplicados nas muitas pontas soltas e contradições dramatúrgicas.

No primeiro terço do filme somos apresentados à localidade “Bacurau”, num futuro próximo, no interior nordestino: um vilarejo que parece ter sumido literalmente do mapa. Um velório transcorre trazendo comoção aos habitantes com uma cena patética da médica Domingas (Sonia Braga), bêbada, parecendo inicialmente cobrar dos demais – antecipadamente, quando morrer - a mesma atenção que a falecida Carmelita (Lia de Itamaracá) está merecendo. Mais tarde saberemos que, juntas, lutavam pelo bem-estar possível numa cidadezinha esquecida do resto do país. Abandonada mesmo.

A personagem (pouco desenvolvida) de Barbara Colen traz vacinas e soro antiofídico (talvez como bens contrabandeados?) no caminhão-pipa que em breve sofrerá um ataque a tiros. Falta água, falta tudo, enquanto um político demagogo despeja - literalmente também -, para a biblioteca local, livros “a peso”, em péssimo estado, jogados de qualquer jeito e, certamente, de utilidade zero. Com isto - e outros supostos “benefícios” para a população - espera receber votos na próxima eleição. Este interesse em obter míseros votos daqueles tão poucos eleitores não se explica no decorrer da trama, ficando como algo totalmente contraditório com o que se esclarece no final.

Uma dupla de forasteiros (Karine Telles e Antonio Saboia) chega ao lugarejo, ficando claro para os espectadores que dissimulam suas verdadeiras intenções. Mais adiante, um grupo de estrangeiros, falando em inglês (há legendas), parece brincar de tiro ao alvo com vidas humanas, repetindo-se um clichê de distopias já exploradas pelo cinema e pela literatura sci-fi. Cinéfilos menos jovens lembrarão facilmente de A Décima Vítima (1965!), de Elio Petri, com Mastroiani e Ursula Andress - e que já não era bem resolvido, embora a situação fosse original.

O recado explícito de Mendonça Filho e Dornelles envolve um acúmulo de ideias:

a) o imperialismo norte-americano pode ser muito lesivo a países da América Latina;

b) os ideários nazifascistas vêm renascendo em diversas formas de neonazismo, havendo um personagem alemão - tal como o ator que o interpreta, Udo Kier - que, entretanto, considera-se "mais americano" do que outros nascidos por lá; mas dentre as várias pontas soltas do roteiro também não se explica dramaturgicamente o encontro deste personagem com o da Sonia Braga... ou fica muito mal explicado com a frase solta de que ele "não ataca mulheres"... (Parece mais que "tinha que haver" uma cena com os dois nomes mais conhecidos do elenco); assim como soa bem falso o prurido moral de um dos personagens violentos quanto ao ataque a crianças;

c) é absurda a liberalidade na aquisição de armas, muitas até com enorme poder de mortalidade, à disposição por lá (e com enorme interesse do atual desgoverno em liberar geral por aqui);

d) há uma consequente banalização no ato de matar (e de sermos assassinados por nada) no mundo atual, com enorme menosprezo pelas vidas dos menos aquinhoados na escala socioeconômica;

e) a violência destrutiva tornou-se epidêmica;

f) não há forças de segurança que protejam os mais pobres: "Não há polícia aqui", é dito com todas as letras;

g) há uma erotização da violência: matar pode excitar personagens perversos, tanto no sentido da maldade como no da perversão sexual, o que transforma um assassinato em convite ao coito;

h) a prostituição pode se transformar num recurso algo tolerado pelas comunidades mais pobres;

i) só unidos poderemos fazer frente às ameaças citadas que retiram os direitos do cidadão;

j) latinos que se acreditam “iguais” e submissos aos vizinhos do Norte em seus interesses malévolos são tolos iludidos que correm risco de descarte, e jamais serão aceitos como "iguais" - pois nossa pele morena não é reconhecida como a dos “wasp’s”

- isso tudo, para citar algumas situações graves do mundo e do Brasil atual que o filme aborda, claro que criticando-as.

Além do proselitismo, o filme incorre no político-panfletário distorcido quando se escuta o nome de "Marisa Letícia", obviamente associado ao da ex-primeira dama falecida de causas naturais, ao lado do nome "Marielle", a vereadora que morreu numa emboscada covarde, brutalmente assassinada. Parece que as convicções dos roteiristas precisam ser explicadas de modo óbvio, bem explícito e excessivamente didático. Sutileza zero. Pode servir como discurso, mas não serve tão bem à dramaturgia. Um pouco de Brecht, mesmo em suas peças mais didáticas faria bem. Glauber soube ser brechtiano em Deus e o diabo, por exemplo, mas não lembro de seguidores à altura.

O uso de canções ligadas a uma fase heroica e criativa do cinema brasileiro, o Cinema Novo, se faz ouvir desde o início: “Objeto Não identificado”, de Caetano, na voz de Gal Costa, era usado no desfecho de Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr, que, rodado em 1969, também se passava num então futuro igualmente desvalido para nossa nação – ainda que com menor grau de ameaças como as elencadas agora - e é a canção que abre Bacurau; “Réquiem para Matraga", lindíssima composição de Geraldo Vandré, também encerrava A Hora e a Vez de Augusto Matraga na versão de Roberto Santos, 1965; e a fortíssima “Bichos da Noite” é de Sérgio Ricardo, compositor da trilha emblemática de Deus e o diabo na terra do sol, e cuja letra, de Joaquim Cardozo, originalmente de sua peça/poema “Coronel de Macambira”, cita bacurau, o pássaro. A lembrança destes filmes não é propícia ao filme em questão, embora a cena do cortejo fúnebre de Carmelita, com ajuda desta última canção, seja um dos bons momentos do filme - que arrisca um efeito extemporâneo de "realismo fantástico" quando brota água do caixão.

Alguma coisa da distopia que se quer caracterizar é brevemente “explicada” e dimensionada numa cena em que se vê um aparelho de televisão ligado anunciando “novas execuções públicas às 14 horas em São Paulo”, sem maiores detalhes nem desenvolvimento. Aqui, a sutileza não colaborou, ao contrário de outros muitos momentos em que fez falta.

Sim, também tememos em que o Brasil possa se tornar - ou já está se transformando - mas na realização de um filme bem dirigido visualmente caberia esperarmos um pouco mais de criatividade e menos maniqueísmo didático sob o álibi de cinema de gênero: no caso, o western - ou um neo-nordestern – mesclado com distopia. Não é apenas porque concordamos com o ideário de um filme que ele se torna satisfatório. E um ideário louvável não faz, por si só, um bom roteiro - mesmo que o filme traga qualidades na direção.

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Outros comentários
    4925
  • Fábio Caldas Vianna
    02.09.2019 às 16:18

    Excelente crítica. Pena eu não ter paciência para tantas ponderações pertinentes. A parte final é o resumo do que acho do filme. Ele é bom, direção satisfatória, mas com uma ideologia chapada, realçada e realçada diversas vezes. Isso também ocorre nos filmes anteriores do diretor.
  • 4927
  • Martim Cardoso
    05.09.2019 às 08:25

    Concordo com a crítica - e ainda assinalo que a violência é usada em níveis dignos de Tarantino, mas sem a mesma qualidade de roteiro e de humor.