Numa Gothan City infestada por ratos (a Nova York decadente dos anos 1970 – ou outra cidade de hoje em dia ou de um futuro próximo) reinventa-se a história prévia do Coringa, vilão que vai se tornar arqui-inimigo do Batman em tantos filmes e encarnações, sendo as mais famosas até agora as de Jack Nicholson em 1989 e Heath Ledger em 2008. Com Joaquin Phoenix surge uma versão em que ele aparece inicialmente como vítima antes de assumir sua vilania.
A assinatura do filme surpreende por ser de um diretor mais identificado por suas comédias (Se beber, não case), também co-autor do roteiro com ares distópicos. Mas é daqueles filmes em que o ator central (Phoenix) merece ser considerado como outro co-autor: sua criação é antológica, não sendo possível imaginar o mesmo filme sem seu desempenho fenomenal. Não é novidade que se trata de um intérprete excepcional: filmes como Ela, O Mestre, Era uma vez em Nova York, Amantes, Johnny e June - dentre outros - já comprovaram isso. Mesmo assim, esta nova interpretação poderá surpreender até os mais entusiasmados fãs que o consideravam inexcedível até então. Trabalhando no limite do patético, a um passo de descambar no ridículo, Phoenix é capaz de andar (e dançar e sapatear) na corda bamba ao transmitir a vivência de humilhação do personagem, seu ressentimento, o caminho para a indiferença pela alteridade com o ódio do mais frio psicopata.
A compreensão pelo percurso do personagem rumo aos atos mais ensandecidos jamais surge como uma “justificativa” (como já se quis acusar o enredo). Por outro lado, a situação de abandono dos mais necessitados por uma sociedade que não atende suas necessidades mínimas aparece como barril de pólvora prestes a explodir. Um candidato a prefeito chama a população de “palhaços”, provocando uma reação caótica por parte dos ressentidos com as desigualdades. Neste sentido, o filme se mostra mais atual do que apenas referido à década de 1970.
Referências óbvias a Taxi Driver e a O Rei da Comédia, ambos de Scorsese, ficam acentuadas pela presença de Robert De Niro no elenco. E a trilha musical, além de trazer standards conhecidos do cancioneiro norte-americano usados com ironia, tem colaboração da compositora recém-premiada pela trilha da série de TV Chernobyl, Hildur Guðnadóttir, também premiada em Veneza - onde o filme arrebatou o Leão de Ouro de modo inesperado.
Alguns senões: o roteiro força a presença do personagem de Phoenix num programa ao vivo de TV; e esta cena surge como um dos três ou quatro “finais” que parecem encerrar o filme sem que se chegue de fato ao desfecho. Nada que prejudique muito suas muitas qualidades.