Críticas


DIAS DE GLÓRIA

De: RACHID BOUCHAREB
Com: JAMEL DEBBOUZE, SAMY NACERI, ROSCHDY ZEM, SAMI BOUAJILA
09.02.2007
Por Luiz Fernando Gallego
GLÓRIA DESFEITA PELO SANGUE

O diretor de Dias de Glória, Rachid Bouchareb, pode ter declarado que não se incomodava com o título americano que foi reutilizado para o título brasileiro. Mas não é bem de “dias de glória” que o filme trata. Pelo contrário. Como exemplo disto podemos citar uma cena em que vemos um pelotão de apenas cinco soldados do exército francês da II Guerra chegarem a um pequeno vilarejo onde devem combater alemães que podem tentar retornar. Tropas americanas haviam expulsado o inimigo, mas seguiram em frente logo em seguida - e o posto conquistado está desprotegido. Os que chegaram são recrutas que falavam árabe em seus países de origem, nascidos em colônias francesas da África do Norte (o chamado ‘Magreb’) e que lutaram pela França em importantes batalhas de 1943 em diante. Um membro da população local da vila, já idoso, ao se dar conta de como era insignificante numericamente o contingente que vinha protegê-los e defender a posição conquistada pelos aliados, pergunta, perplexo: “Onde estão os outros?” Ele não sabe que estes é que são “os outros”, aos quais são destinadas as mais perigosas posições nos ataques franceses. Não se trata de “glória”, mas de alto risco com grandes chances de serem atingidos.



Uma mescla de ingênuo quixotismo com um desengraçado espírito de exército “brancaleonês” é o que une estes argelinos, marroquinos e outros soldados magrebenses utilizados como bucha de canhão, sempre colocados nas linhas de frente de batalhas sangrentas, jamais promovidos - e tendo sempre negados os pedidos de licenças de visita às famílias. Até mesmo a comida seria separada; e suas cartas, censuradas. Para promoções, haveria o famigerado sistema de quotas privilegiando os franceses nativos, sem levar em conta o mérito propriamente dito como critério maior. Ou seja: além de lutarem contra tropas do eixo, ainda tinham que tentar defender direitos que lhes eram negados pelos superiores brancos, nascidos na “Pátria-Mãe” - que é como se referem à França com a qual se identificam de modo claramente colonizado, submisso e reverente. Como sempre pretendem os colonizadores.



Um cemitério de soldados mortos em combate, logo após a primeira cena de luta do filme, mostra um pequeno número de cruzes demarcando os túmulos de cristãos – enquanto vemos dezenas e dezenas de pedras servindo de lápides para bem caracterizar quantos foram os muitos mortos muçulmanos, aqueles nascidos no império colonial francês da época.



O filme não nega sua intenção de resgatar eventos históricos que ficaram (não casualmente) esquecidos pela chamada “História dos Vencedores” - ou dos mais poderosos. E existe mesmo o propósito de assumir um tom panfletário em defesa dos discriminados, o que fica patente em uma mensagem final que denuncia questões de cortes de aposentadorias destes soldados “de segunda classe”, vindos das terras colonizadas e chamados de “indígenas” (o título original do filme é Indigènes), provavelmente um termo ainda mais depreciativo do que o xingamento de “pied noir” que Zidane teria recebido na final da última Copa quando perdeu a cabeça na famosa cabeçada que deu no adversário italiano que o provocou.



Por este engajamento social, Dias de Glória já tem um lugar garantido na história do cinema francês, mesmo que mantenha a linguagem de cartilha mais típica de filmes de guerra. É comum neste tipo de filme, a serviço de uma causa, que se faça a opção por uma linguagem tradicional, acadêmica, direta e clara, visando conquistar o público mais amplo possível para divulgar sua mensagem e idéias. E não se pode negar que Bouchareb tenha atingido exatamente o que pretendeu com competência e eficiência. Apesar de cenas que trazem certo desconforto e indignação (o que certamente foi desejado), nem mesmo a duração do filme se faz sentir e ele conquista facilmente a platéia no sentido de promover identificação com os personagens estigmatizados pelo preconceito racial dentro das próprias forças armadas a que servem com bravura. Teriam sua glória militar reconhecida, não fosse a diferença de sangue não - genuinamente francês em suas veias.



O desempenho dos atores também é fundamental para seduzir o público emocionalmente - e também neste aspecto o filme é eficaz: os atores principais chegaram a receber um prêmio conjunto de interpretação masculina no Festival de Cannes (simétrico à premiação em conjunto para as atrizes de Volver). Cada um defende bem o tipo a que foi destinado, escapando quase sempre ao estereótipo “3 por 4”: Bernard Blancan é o sargento; Jamel Debbouze, o soldado naïf; Roschdy Zem tem o desempenho mais bem-sucedido em matéria de composição (discreta) para um personagem com um pouco mais de nuances, ainda que voltado para o clichê de ser aquele argelino que se apaixona por uma francesa; Sami Bouajila compõe com densidade o mais esclarecido por um lado, mas que ambiciona um tanto ingenuamente promoções que nunca virão, além de ser o que protesta por um tratamento mais igualitário; Samy Nacéri faz o que tinha – originalmente - apenas ambições mercenárias.



Não deixa de ser interessante assistirmos um filme atual onde muçulmanos, com suas crenças e hábitos, são mostrados de forma bem neutra, e até mesmo sem excessos de simpatia complacente; e, acima de tudo, nenhum deles passível de ser confundido de modo indiscriminado com terroristas que hoje ameaçam o Ocidente. Principalmente quando, em Cartas de Iwo Jima - o “lado B” que Clint Eastwood filmou para formar um díptico com o bem superior Conquista da Honra - vemos muitos japoneses da mesma II Guerra sendo insistentemente mostrados como kamikazes suicidas, o que se pode até ter sido verdadeiro, mas que pode acabar por induzir uma fácil associação com os “homens-bomba” dos dias de hoje. E isto quando Eastwood diz ter pretendido uma obra que queria mostrar o mesmo sofrimento que traz a guerra, seja para um lado, seja para o outro - e ainda que o seu personagem japonês mais “esclarecido” seja um francamente “ocidentalizado”...



Dias de Glória não parece muito preocupado com proselitismo de denunciar os horrores das guerras, estando francamente mais interessado em reabrir a ferida do tratamento discriminatório dos franceses para com os povos colonizados, coisa que está tendo resultados tardios desastrosos até hoje dentro da própria França, retratados de forma algo mais do que metafórica em Caché, de Michael Haneke. A discriminação existiu até mesmo na morte inglória e não-reconhecida como heróica.



Algumas curiosidades: o diretor Bouchareb não deixou de ser – ainda que indiretamente - premiado mais de uma vez no Festival de Cannes 2006, já que além do prêmio conjunto de interpretação masculina, o filme Flandres, de Bruno Dumont, recebeu uma (polêmica) Palma de Ouro, sendo Bouchareb o produtor dos filmes de Dumont – que têm uma linguagem, para melhor ou para pior, bem diferente da sua, a julgar por este Indigènes, único filme seu que conhecemos. Agora está na corrida para o Oscar de filme em língua não-inglesa. E consta que o Presidente Chirac mandou rever o caso das aposentadorias dos recrutas “indígenas” depois do protesto explícito que o filme levantou. Pena que, passados mais de 60 anos do final da guerra, os sobreviventes devem estar quase todos mortos – ou, certamente, muito velhos. Além do parco reconhecimento da importância dessas tropas relegadas ao esquecimento pelas elites militares - ainda que sob a mesma bandeira -, o sangue árabe/africano quase que só lhes permitiu a glória dos cemitérios.



# DIAS DE GLÓRIA (INDIGÈNES)

França/Argélia/Marrocos/Bélgica, 2006

Direção: RACHID BOUCHAREB

Roteiro: OLIVIER MORELLE e RACHID BOUCHAREB Fotografia: PATRICK BLOSSIER

Montagem: YANNICK KERGOAT

Música: ARMAND AMAR e KHALED.

Elenco: JAMEL DEBBOUZE (Said), SAMY NACERI (Yassir), ROSCHDY ZEM (Messaoud), SAMI BOUAJILA (Abdelkader), BERNARD BLNACAN (Martinez).

Duração: 125 minutos

Site oficial: http://www.tadrart.com/tessalit/indigenes/

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