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A TABACARIA

De: NICOLAUS LEYTNER
Com: SIMON MORZÉ, BRUNO GANZ,JOHANNES KRISCH, EMMA DROGUNOVA
11.10.2019
Por Dinara Guimarães
Um caso de amor na transferência paterna com Freud mediada por palavras, sonhos e charutos cubanos.

Para ver este filme depois que saiu do circuito de salas: https://www.filmmelier.com/pt/br/film/7634/a-tabacaria

O filme austríaco-alemão, A Tabacaria, de Nikolaus Leytner - adaptação do best-seller de 2012, “Der Trafikant” (que significa “dono ou vendedor de tabacaria”), do autor Robert Seethaler - termina como começa, com a morte do pai simbólico.

Já na primeira cena, o caso amoroso da mãe (Regina Fritsch), morre eletrocutado por meio de um raio, enquanto mergulhava em um rio. Com a narrativa, o choque da mãe diante da morte lhe faz mandar seu filho, Franz (Simon Morzé), morar em Viena, na tabacaria do velho amigo Otto Trsnjek (Johannes Krisch), na intenção de que ele aí desenvolva sua sexualidade na transição da adolescência a adulto. Assim, o desejo incestuoso do seu filho é reprimido e deslocado. E logo aparece a transferência paterna no encontro de Franz com Sigmund Freud, interpretado por Bruno Ganz, um frequentador assíduo da tabacaria - que se torna seu interlocutor e com quem ele partilha suas fantasias e angústias, paixões e desejos, e lhe vende os charutos cubanos com a marca: “feitos por homens corajosos e enrolados nas coxas de belas mulheres”.

A morte do pai simbólico ao final é a do dono da tabacaria, representado como um mutilado da Primeira Guerra que se opõe à extrema-direita e termina assassinado pelos nazistas porque vendia, a judeus e comunistas, cigarro, jornais e revistas pornográficas - consideradas um atentado aos bons costumes familiares. Assim sendo, o filme caracteriza-se como uma produção de arte que vem lembrar o extermínio dos judeus à época da ascensão do nazismo devido a ímpetos injustificáveis de cólera, ódio, perseguição e violência que efetivam a esterilização da palavra, causadora de uma suspensão do laço social com o outro.

No lugar idílico, no interior da Áustria, onde Franz morava com a mãe, os impasses libidinais fundamentais do sujeito humano são inicialmente interpretados como fatalidade da natureza, os quais, na sequência da narrativa fílmica, são traduzidos pelo envolvimento libidinal de Franz com os substitutos paternos e com sua experiência amorosa na descoberta de seu primeiro amor, por Anezka (Emma Drogunova).

Essa é a matriz básica do trabalho do sonho que envolve o pensamento onírico latente e o desejo inconsciente articulado ao sonho, de forma que o pensamento latente nesse trabalho do sonho é deslocado, mas é por meio desse deslocamento que outro pensamento verdadeiramente inconsciente articula-se. Esse mecanismo é mostrado nos sonhos escritos por Franz ao acordar, segundo a orientação de Freud. Um deles, com a imagem de Freud morto por afogamento, outro com o poder de um governo totalitário onde a palavra “futuro” é refletida em um espelho fragmentado em mil pedaços.

Deste modo, o filme fornece elementos que demonstram o interesse de Freud na descoberta do mito de Édipo, contemporânea à sua descoberta da psicanálise em 1900, na “Interpretação dos sonhos” (Traumdeutung). A partir da condição do desejo inconsciente edípico que Freud encontra nos sonhos, Franz é mergulhado na tensão entre Eros e a pulsão de morte. Tensão que reaparece na projeção dos seus sonhos repetitivos com as metáforas da água, vertigem, insetos iluminados dentro da janela do quarto onde ele adormece profundamente na calada da noite, e que se torna a janela da fantasia através da qual ele projeta seus sonhos de angústia - que aparecem como o desejo desesperado de escapar da asfixia e encontrar ar para respirar.

Desta forma, na qualidade de projetar um herói moderno, o filme não cai no melodrama nem na exposição insuportável da crua violência realística consagrada na estetização da violência pela violência, mas de um herói que passa pela transição da ingenuidade ao conhecimento, e termina por expor seus sonhos escritos, fixando-os na vidraça exterior da tabacaria. Eles atraem curiosos, mas também os que estavam a serviço do regime nazista com a ascensão de Hitler ao poder, determinantes das tensões entre os austríacos apoiadores do ditador e os que não compactuaram com o regime nazista.

Com a virada pela qual Franz perde a inocência e incorpora o real, o olhar da laterninha que carrega na mão ilumina para quem quer ver, a cena de regimes totalitários e de propagação da indústria bélica, como a que se esboça atualmente no Brasil.

Dinara Gouveia Machado Guimarães é autora dos livros sobre Psicanálise e Cinema: "Vazio Iluminado: o olhar dos olhares" (Ed. Garamond), "Voz na luz" (Ed. Garamond), "Escuta do desejo" (Cia de Freud). e "La voix dans la lumière - Essais sur le cinéma et la psychanalyse" (Ed.Amazon).

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