Críticas


LUTA DE CLASSES

De: MICHEL LECLERC
Com: LEILA BEKHTI, EDOUARD BAER, RAMZY BEDIA
24.10.2019
Por João de Oliveira
Uma comédia simpática e inteligente sobre as diferenças e as contradições de um casal de esquerdistas frente ao pluralismo cultural francês

O filme de Michel Leclerc narra as diferenças e as peripécias de um casal de burgueses boêmios (bobos) frente aos problemas encontrados com a escolaridade do filho de dez anos e o convívio com uma vizinhança popular e religiosa. Paul, francês, idealista anarquista, é um baterista de um pequeno e decadente grupo de punk rock que vive opcionalmente às margens do sistema. Sofia, francesa de origem magrebina, é uma brilhante advogada de um grande escritório de advocacia. Apesar das afinidades intelectuais e do amor que os une existem algumas pequenas diferenças entre eles. E alguns desses pequenos desacordos aparecem já na primeira sequência do filme. Primeiro quando Paul repreende prazenteiramente Sofia por ela não colocar a mesma quantidade de fatias de queijo em cada sanduíche das crianças, impedindo-as de aprenderem, desde cedo, a noção de igualdade. E em seguida quando ele tenta recusar que o apartamento deles seja vendido pelo dobro do preço pelo qual eles o compraram. Em nome da compra da casa dos sonhos de infância da esposa, Paul aceita, um tanto contrariado, a quebra de seus princípios.

Membro de uma classe média esclarecida, o bobo é, majoritariamente, simpatizante da esquerda. Paul e Sofia não fogem à regra e educam os filhos no respeito à diversidade e na tolerância com as diferenças. Além disso, Marion, filha adolescente de um outro relacionamento de Paul, e Corentin (chamado de Cocô, um adjetivo familiar utilizado para qualificar os comunistas), filho do casal, são educados sem a hierarquia que coloca pais e filhos em lados opostos, base dos modelos mais tradicionais de família. O segundo estuda numa escola pública do bairro que refletiria o ideal de sociedade dos pais, ao respeitar a diversidade étnica e cultural dos estudantes. Ali, ainda nos primórdios do ensino fundamental, as crianças aprendem a importância da Revolução Francesa e os requisitos sociais e antropológicos básicos para a constituição de uma sociedade mais justa e solidária, como podemos deduzir de frases escritas no quadro negro e de mapas presentes na sala de aula. Não chega a ser uma surpresa para uma escola que se chama Jean Jaurès, grande nome da esquerda francesa. Fundador do jornal comunista L'Humanité e grande pacifista, ele foi assassinado em 1914, às véspera da Primeira Guerra Mundial, em razão de suas posições contrárias ao conflito. Jean Jaurès foi também um dos responsáveis pela Lei 1905, que promulgou a separação entre as Igrejas e o Estado e que constitucionalizou a laicidade na França. Não por acaso, há um grande cartaz dessa lei na sala da casa do casal, bem perto da porta de entrada, como um cartão de boas vindas para os visitantes. Um cartaz que Sofia tenta dissimular por trás do porta casaco quando, no final do filme, recebe para jantar um casal de vizinhos muçulmanos.

Paul, que por questões de princípios e para tristeza de Sofia, é terrivelmente contra o casamento heteroafetivo, mas defende o casamento homoafetivo, como ilustra um pequeno cartaz na parede da sala. Ele discute abertamente e sem tabu a possibilidade de seus filhos serem homossexuais. De tal forma que Cocô, entusiasmado com a ideia, diz a sua mãe constrangida (mas nunca chocada) que será gay quando crescer, transformando a sua orientação sexual numa escolha deliberada e, por que não, política. Algo que talvez choque o atual puritanismo da sociedade brasileira.

Todo esse universo social extremamente idealizado e esquemático começa a ruir quando, nos primeiros minutos do filme, as crianças de três famílias diferentes relatam aos pais assustados os detalhes de uma violenta altercação entre alguns de seus colegas. Apesar das observações da filha adolescente de Paul para que o incidente seja percebido como algo sem importância e ocasional no cotidiano das crianças, a briga provoca uma mudança de comportamento dos adultos entre eles e uma pequena ruptura entre eles e o meio social adjacente, abrindo espaço para a intriga do filme baseada nas contradições e na hipocrisia dos protagonistas.

Na sequência, os dois casais amigos retiram seus filhos da escola pública e os transferem para uma escola católica particular, mais socialmente uniforme, da qual seus vizinhos de origem africana são excluídos por causa de sua religião e condições sociais. Aos poucos Paul e Sofia vão percebendo que quase todos os franceses não oriundos da imigração fizeram essa mesma escolha, o que os faz refletir sobre o isolacionismo de seu filho, que começa a sofrer uma certa marginalização de seus colegas religiosos pelo fato dele não acreditar em Deus, fazendo o filme cair num certo clichê. E como em todo clichê permanece a dúvida se ele é uma caricatura ou uma lupa que permite a amplificação de um problema social.

Todas as tentativas de resolver o problema da integração do filho se revelam um verdadeiro desastre. Não apenas piora a situação do filho, como engendra uma crise no seio do casal. Divergências latentes, silenciadas para evitar o conflito, afloram e abrem caminho para a dor e o remorso, revelando a unilateralidade de alguns postulados.

Uma das cenas mais engraçadas do filme, que revela todo o ridículo do casal e o pragmatismo de seus ideais, é a que mostra a tentativa de inscrever o filho na mesma escola católica dos filhos de seus amigos. Além de terem condenado com veemência a decisão dos amigos, eles detestam a escola particular pelo fato de que ela destruiria o valor fundamental e republicano da igualdade de oportunidades, frearia o elevador social. A iniciativa fracassa porque o padre descobre um vídeo de uma música totalmente sacrílega do grupo de Paul.

A geografia humana, a partir da geografia urbana, ocupa uma importante função dramática na estrutura narrativa do filme. A escolha de Bagnolet, o lugar para onde o casal se muda, não é casual. Trata-se de um bairro majoritariamente operário, com um número significativo de estrangeiros e de franceses de origem estrangeira por causa de seus muitos programas sociais. Politicamente engajada, a população desse bairro limítrofe de Paris elegeu apenas prefeitos comunistas de 1928 à 2014. Nas eleições de 2014, em razão de uma dissensão no seio do PC local, eles votaram numa coalizão de esquerda.

A escola do bairro, que está se desmoronando, funciona como metáfora social de uma certa França e particularmente de uma certa esquerda que não aceita o multiculturalismo e não consegue mais dialogar com as classes populares. Ao pôr fim ao sonho da miscigenação social defendido pela esquerda, a fuga dos “franceses brancos” endossa o discurso conservador, cria uma espécie de apartação e transforma a escola num gueto de “franceses não franceses” (aqueles oriundos da imigração), como sugere o diretor da escola. A diversidade étnica do estabelecimento traduz de modo irrevogável a realidade demográfica da Franca contemporânea e sua negação ou recusa por setores progressistas espelha as contradições daqueles que se dividem entre uma teoria de tolerância e uma conduta sectária, entre um discurso que defende a integração e outro que denota indiferença ou desprezo. Aqui o filme parece denunciar o embaralhamento do jogo político com a uniformização dos discursos da esquerda e da direita.

Essa dificuldade em dialogar com as diferenças fica clara em três momentos do filme. Primeiro quando uma vizinha é convidada para participar de uma horta coletiva que é totalmente regida pelos ideais dos organizadores, sem espaço para a interatividade. A convidada, que é negra e muçulmana, mal consegue se exprimir e é filmada quase sempre separada do pequeno grupo ou às margens do quadro. No momento em que o grupo de Paul realiza um concerto na rua para apoiar os imigrantes, esses últimos aparecem com seus fones no ouvido e pouco prestam atenção na música tocada, tendo dificuldades para entender o propósito do show. A iniciativa fracassa, na medida em que não há interação, em que o discurso não é entendido. Por último, ela aparece no jantar no final do filme, quando, apesar dos vizinhos muçulmanos também mostrarem dificuldades para entender a escolha de vida do casal, Paul, escudado por um pretenso ciúme, parece considerá-los como social e intelectualmente inferiores, como candidatos a terroristas, enquanto Sofia, mesmo não concordando com seu modus vivendi, revela uma condescendência e uma indulgência que apenas dissimulam a posição de classe.

O final é otimista, apesar de um pouco estereotipado. Assim como a escola, a França precisaria da integração entre as diversas classes, etnias e culturas para tentar se reconstruir. Num mundo globalizado, a salvação poderia estar numa união entre as esquerdas e as classes populares que precisariam, elas também, abrir mão de alguns dogmas para uma melhor integração.

A título de curiosidade, nos créditos lemos o título da música Ô Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, que não me lembro de ter escutado ao longo do filme.

Luta de Classes é uma comédia política e despretensiosa, mas bem humorada e inteligente.



 

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