O cinema militante, que esteve na moda nos anos 1960 e 1970, parece estar de volta. Há muito não havia tantos filmes políticos em cartaz ao mesmo tempo. Preocupados com os rumos do mundo, com a ressurgência de governos absolutistas, pouco afeitos à democracia, e do fundamentalismo religioso, o cinema assume sua função social e apresenta-se como uma alternativa à imprensa tradicional, sempre associada ao poder estabelecido, no que concerne a informação. Papicha, o primeiro longa-metragem da cineasta argelina Mounia Meddour, é um deles.
Nedjma é uma jovem que sonha em se tornar estilista de moda. Enquanto o sonho não se realiza, ela estuda francês, desenha e costura alguns belos vestidos que ela vende para suas amigas nos banheiros das discotecas de Alger durante os anos 1990. Considerados como a década negra, os últimos anos do século XX foram muito difíceis para o povo argelino. Em razão do conflito que opôs o governo a alguns grupos islâmicos, dezenas de milhares de pessoas foram vítimas da violência policial e, notadamente, como podemos observar no filme, dos numerosos atentados terroristas. Enquanto de um lado havia um governo pouco respeitoso das regras democráticas, do outro um grupo de fanáticos salafistas tentava impor a xariá e sua interdição de toda e qualquer forma de liberdade, sobretudo das mulheres.
Papicha denuncia essa falta de liberdade e as agruras de ser mulher numa sociedade paternalista, sexista e entorpecida pelo fanatismo religioso. As jovens vivem numa espécie de república de estudantes que se transforma progressivamente numa forma de prisão. Aliás, desde a primeira sequência, quando as duas estudantes saem à noite para vender os vestidos, temos essa ideia de aprisionamento.
A falta de liberdade aparece também na escolha de primeiros planos muito fechados, curtos e foscos, com pouca profundidade de campo, denunciando a tensão, a opressão e a falta de perspectiva dos personagens. Ainda que Nedjma, contrariamente a alguns de seus amigos, não seja uma adepta do exílio, os poucos planos mais abertos aparecem quando os personagens estão na praia, com toda a dimensão onírica e escapista que o mar evoca para os africanos, e no cemitério.
O fundamentalismo obscurantista não persegue apenas as mulheres que preferem roupas coloridas e sensuais em vez de enterrarem seus corpos dentro de austeros hábitos religiosos. Além da prisão de um professor universitário, no momento em que ele começava uma aula citando uma frase do biólogo e humanista francês Albert Jacquard, vemos a destruição de uma mediateca por um ataque terrorista. A arte, a cultura e o ensino são, em qualquer época e lugar, os principais alvos da tirania.
A essa arbitrariedade, a jovem do filme, uma obstinada e corajosa resistente, decide reagir com seu talento de artista. O lápis, a máquina e a tesoura se transformam em suas armas. Aliás, sua tesoura é literalmente transformada em arma quando ela tenta agredir o vigia da república, inimigo da liberdade que ela encarna. Contra tudo e contra todos, desafiando as milícias femininas e masculinas, ela organiza um desfile que profana ao mesmo tempo os trajes religiosos das mulheres, liberando e sensualizando o corpo feminino que eles tentam oprimir e aprisionar, e o bigotismo. O evento representa também a independência da mulher, o fim da submissão. Não por acaso, a sua realização é fruto da determinação da amiga mais religiosa que acaba sendo, de uma certa forma, a mais rebelde do grupo e talvez a responsável pela emergência de uma nova geração. Para ela, que lamenta não ter a mesma independência das amigas e teme o futuro sombrio de dona de casa que sua família tenta lhe impor, o evento simboliza o fim da sujeição, o direito de ser dona de seu corpo e de seu destino.
Para a realização do desfile no interior da república, Nedjma conta com a ajuda e o incentivo de suas amigas. Se as jovens podem ser muito ríspidas em suas brincadeiras ou querelas, elas demonstram uma grande amizade e uma inestimável solidariedade na hora em que a protagonista mais precisa delas.
A história se passa nos anos 1990, mas poderia se passar no presente e não apenas na Argélia. Há, no momento, muitos países nos quais as mulheres independentes, os intelectuais, artistas e professores são perseguidos. Precisaria apenas variar as modalidades dos atentados.
A última sequência parece ilustrar a citação do humanista francês feita pelo professor na hora de sua prisão. A sociedade do futuro não deve, em hipótese alguma, repetir a do presente. Otimista, a instância narrativa acredita que a sociedade do futuro será diferente e melhor, mais tolerante, mas para que isso ocorra é preciso que haja menos espaço para o religioso e que as mulheres tenham um maior protagonismo.
Papicha, o Bacurau argelino, é uma ode à resistência e à emancipação da mulher e de seu corpo.