Críticas


A vida invisível das mulheres quando não sofrem

20.11.2019
Por Maria Caú
Uma análise feminista do novo filme de Karim Aïnouz

I

Num debate na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano sobre A vida invisível, novo filme do diretor Karim Aïnouz, concorrente brasileiro ao Oscar, a crítica Carol Lucena questionou o diretor, o produtor Rodrigo Teixeira e o roteirista Murilo Hauser, indagando por que o sofrimento das mulheres é tão atraente para os homens, parecendo ser o único aspecto que eles se sentem confortáveis para retratar. Os dois primeiros desviaram completamente da pergunta, cada qual à sua maneira.

O diretor se disse interessado no sofrimento de modo geral, e nem ao menos explicou sua opção de cortar do livro de Martha Batalha todas as passagens alegres. “Seria muito difícil você fazer um filme sobre personagens alegres o tempo inteiro, duraria cinco minutos”, brincou. Veja bem, Carol Lucena não fez o elogio à histeria da felicidade no cinema, embora eu ache essa representação possível e adore Curtindo a vida adoidado, por exemplo, uma narrativa cujo protagonista passa quase duas horas feliz. Os personagens podem (e devem) não estar alegres o tempo todo. Mas por que razão eles (ou melhor, elas, porque os homens pouco sofrem neste filme) têm que sofrer pela quase totalidade dos longuíssimos 139 minutos? Este foi o conteúdo da pergunta.

Teixeira falou da importância de contar com um filme com representatividade e tema femininos na sua carreira de produtor, para ele muito masculina. Longe de mim lembrar a Teixeira sua própria (e muito brilhante) carreira, mas a verdade é que ela passeia por obras de diretoras ou roteiristas mulheres (A sombra do pai, de Gabriela Amaral; Francis Ha, coescrito e estrelado por Greta Gerwig) e conta com outros títulos protagonizados por mulheres ou até afeitos a questões feministas, como Patti Cake$ e A bruxa). Não faria mal ter ainda mais filmes neste perfil, e essa intenção é mais que louvável, é claro, mas isso não responde à pergunta de Lucena. Assim como não responderam as declarações seguintes de Teixeira, que afirmou ter crescido numa casa com seis mulheres e ter a irmã na equipe do filme.

Murilo Hauser foi o único a tentar aludir à questão colocada, explicando acreditar que o filme é sobre “a força das mulheres”, e não sobre o sofrimento delas. Em diferentes graus, os três parecem não ter ouvido a pergunta de Carol Lucena. Ninguém de fato ouviu a crítica. Isso diz alguma coisa. Um minuto de reflexão.

II

Até quando os homens vão acreditar que o feminismo enquanto estratégia cinematográfica se resume a mostrar mulheres que sofrem, que são vitimadas (em geral por homens) repetidamente? Até quando vamos chamar de força feminina a simples estratégia de tentar conseguir sobreviver? Aos homens são guardadas tantas forças: a força física, a verve criadora, a ambição profissional, o desejo sexual potente, o pioneirismo, o ideal de ser um agente ativo no mundo. Às mulheres sobra a força de sobreviver, de responder aos ataques com (alguma) autoproteção e uma vaga dignidade (mantendo-se belas, sempre, melhor se se mantêm belas e desejáveis enquanto sobrevivem).

Tanto pior: esses homens são louvados como tendo acesso à “alma feminina” por conta dessas mesmas obras. Reparem que a mulher nenhuma é dada a alcunha de conhecedora da “alma masculina”. A alma masculina é inacessível, porque múltipla. A alma feminina é a necessidade de sobreviver ao sofrimento inerente à sua condição de fêmea. E mais um pouco: a tal alma feminina também comporta um apego incontornável à maternidade enquanto destino. Principalmente se se tratar de um filho homem (e mais este aspecto aparece no filme de Aïnouz). Em resumo, a alma feminina é composta de duas sinas: maternidade e sofrimento. Acho que a minha alma veio com defeito de fábrica, vou mandar ao conserto.

Pois é esta tal alma que o diretor escancara nas telas, criando cuidadosamente uma narrativa em que os momentos felizes estão quase sempre fora de quadro na trajetória das duas irmãs, Guida e Eurídice, perdidas uma da outra e sufocadas pela opressão do Rio de Janeiro dos anos 1950. Quando Guida diz que seu namorado grego a havia lambido, este é o sexo que nós não vemos. Há outras cenas de sexo - ou deveria dizer estupro? E é complexo que o filme borre os limites entre sexo consensual e estupro displicentemente, parecendo acreditar que todo o sexo heterossexual na época era em algum nível uma espécie de abuso contra as mulheres. Se há outras cenas de conteúdo sexual, elas são todas agressivas: estupros, prostituição forçada, mulheres que não têm qualquer prazer com o ato. Pelo menos uma dessas cenas tem claro sentido narrativo, mas ainda assim, é inevitável questionar: por que diabos não vemos o grego lambendo Guida? Por que vemos Guida voltando da festa, e quase nunca na festa? Por que a relação de paixão de Eurídice pelo piano é grosseiramente mal pormenorizada (e o diretor filma a personagem ao piano de forma constrangedoramente antiquada e pouco inspirada, enquanto filma sua tenebrosa noite de núpcias de forma muito mais pensada e esteticamente elaborada)?

[spoiler]

Por que ele escolheu fazer com que elas não se reencontrassem jamais (e colocou um deus ex-machina grosseiro para ampliar essa sensação de injustiça ao final)? Numa sequência particularmente inverossímil, Eurídice enlouquece e atira fogo ao próprio piano, para depois ser diagnosticada com psicose maníaco-depressiva por um médico que também declara a sua gravidez, uma espécie de psiquiatra/ginecologista dos anos 1950 que informa essa conjunção de tragédias ao marido, enquanto Eurídice permanece fora de foco no plano, já que grosseiramente dispensável para expressar o próprio sofrimento.

[fim de spoiler]

Esquivando-se assim das alegrias, o diretor diminui suas protagonistas, faz delas menos humanas, as transforma em arquétipos de força e sobrevivência, em clichês ambulantes sobre a experiência da mulher. É sádico com suas personagens, perde a real dimensão de suas vidas.

Permaneço, hoje e sempre, contra qualquer forma narrativa destinada a criar um deserto emocional para seus personagens. Não acredito em desertos emocionais. Talvez em Auschwitz, mas até ali Primo Levi viu alguma empatia. O mundo é feito de encontros e desencontros. E A vida invisível não aposta nem nos encontros que tenta criar: Eurídice e o piano, Guida e sua amiga Filomena - é tudo rarefeito, mal trabalhado, tudo dura poucos frames. E voltamos ao sofrimento, mais uma vez. Por 139 minutos.

III

Não me interessa tanto neste texto dissecar os outros muitos aspectos problemáticos do filme. Outros críticos fatalmente falarão dos diálogos engessados (e que não remetem nem um pouco à década apresentada), da pobre reconstituição de época, dos muitos problemas do elenco. Julia Stockler (Guida) está bastante bem, Fernanda Montenegro faz mágica com seus poucos minutos, mas o restante dos atores não confere aos seus personagens a densidade que o roteiro já não forneceu. A atuação de Carol Duarte (Eurídice) é particularmente fraca e Gregório Duvivier, no papel de um marido duro, é a escalação mais equivocada dos últimos tempos. Outros críticos esmiuçarão estes vieses. Aqui, apenas questiono a legitimidade do uso excessivo, feito por homens, do sofrimento feminino enquanto estratégia fílmica de contornos pretensamente feministas.

É perdoável que um melodrama seja emocionalmente manipulador. Menos perdoável é que as personagens estejam psicologicamente ausentes da própria tragédia, desprovidas de densidade humana, jogadas como cobaias, como formigas que você coloca em uma lata para mapear os caminhos do desespero. Além disso, cabe perguntar o que o filme revelaria de novo sobre a experiência da mulher nos anos 1950? Nada, eu responderia. Na verdade, o que o filme faz é encurralar essa experiência, reduzi-la ao óbvio, desprezando as complexidades que lhe são próprias.

Resta pensar no título do filme. A verdadeira vida invisível das personagens é composta dos momentos em que elas foram felizes, em que sonharam, em que desejaram, em que riram sem parar. Se esses trechos não tivessem sido subtraídos ou amainados, talvez nos conectássemos mais com Guida e Eurídice e, quem sabe, conseguíssemos colocar todo esse sofrimento em perspectiva.

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Outros comentários
    4951
  • Talita
    27.11.2019 às 06:46

    Concordo 100%. Crítica perfeita. O filme é MISOGINO. Ouça Guerrilha Garagem.