A palavra engenho tem duplo significado no filme de Vladimir Carvalho. É o engenho de açúcar paraibano, visto aqui como lugar de origem da personalidade de José Lins do Rêgo; e também sinônimo para o talento com que o escritor engendrou vida e invenção em sua obra. Mas o título ressoa ainda para além de tudo isso. Nele se vê um amálgama do cineasta e seu personagem. Ali está também o engenho de Vladimir.
Embora em idades diferentes, ambos dividiram o cenário de Itabaiana, interior da Paraíba. Zé Lins foi o ídolo da infância de Vladimir, a ponto de o menino se demorar diante do espelho arrumando o cabelo à moda do escritor. Não que essas coisas sejam contadas no filme, mas ecoam no sentimento que comanda muitas cenas. Vladimir debruça-se sobre a vida de Zé Lins como se ele fosse um parente, um tio admirável. E complexo.
A (psic)análise do personagem pontua momentos marcantes como a primeira e traumática visão da morte durante uma encenação da Paixão de Cristo; o tiro acidental que causou a morte de um coleguinha e virou o grande segredo da família; a “amizade amorosa” com Gilberto Freyre, decisiva para sua formação intelectual; a paixão pelo Flamengo que, segundo Carlos Heitor Cony, seria a grande contrapartida de sua imensa melancolia. Vladimir toma uma atitude deflagradora ao colocar esses temas em discussão junto a parentes, amigos e colegas de ofício, assim levando à descoberta de dimensões novas na pessoa e na obra de Zé Lins. Se todo doc biográfico brasileiro tivesse essa envergadura e semelhante coragem, estaríamos no melhor dos mundos.
O Engenho de Zé Lins não se prende a dispositivos nem coleiras metodológicas. Investe em pequenas encenações, depoimentos cativantes como os de Ariano Suassuna e Edson Neri da Fonseca, e materiais de arquivo usados com parcimônia e editados com precisão de relojoeiro. A infância do escritor é fartamente ilustrada com cenas do clássico Menino de Engenho, de Walter Lima Jr., o que leva a um desdobramento emocionante. O ex-ator mirim Sávio Rolim reaparece no cenário do engenho Itapuá, hoje arruinado e ocupado pelo MST. O próprio Rolim é uma ruína humana, às voltas com próteses esotéricas pelo corpo e problemas mentais já difundidos pelo curta O Menino e a Bagaceira, de Lúcio Vilar. A seqüência no Itapuá é o clímax de uma meditação sobre a morte e o fim de um tempo, temas caros tanto a Zé Lins quanto a Vladimir.
Numa das cenas do filme de Lima Jr., o personagem Papa-Rabo é atazanado pela criançada escondida no mato. Uma das vozes que se ouve é de Vladimir Carvalho, gravada num estúdio em 1965. Essa voz atravessa mais de 40 anos para juntar-se agora à voz do entrevistador cálido mas incisivo, uma das assinaturas do grande documentarista. As imagens de São Miguel Arcanjo e da fabricação da rapadura, que volta e meia aparecem nos seus filmes, também marcam presença nesse trabalho em que Vladimir redesenha a imagem de José Lins do Rêgo e, ao mesmo tempo, se mira em seu espelho.
O Engenho de Zé Lins será reprisado no CCBB-Rio dia 1º de abril às 21 horas.
Leia outras resenhas do É Tudo Verdade no DocBlog.
O ENGENHO DE ZÉ LINS
Brasil, 2006
Direção, produção, roteiro e pesquisa: VLADIMIR CARVALHO
Co-produção: LEONARDO EDD, EDUARDO ALBERGARIA
Fotografia: JOÃO CARLOS BELTRÃO, JACQUES CHEUICHE, WALTER CARVALHO, WALDIR DE PINA
Montagem: RENATO MARTINS, VLADIMIR CARVALHO
Som: JAMAL SHREIM, OSMAN ASSIS
Música: LEO GANDELMAN, JOSÉ SIQUEIRA, LUIZ GONZAGA, ANDRÉ MORAES
Narração: OTHON BASTOS
Duração: 80 minutos