Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: SETEMBRO (1987)

25.01.2020
Por Daniel Schenker
Em Setembro (1987), Woody Allen evidencia uma forte conexão com a dramaturgia de Anton Tchekhov

Há um pequeno conjunto de trabalhos na cinematografia de Woody Allen que destoa do restante de sua obra devido à opção pelo registro dramático, denso, distinto de muitas de suas produções, reconhecidas pelo humor peculiar. Os filmes mais contidos, sóbrios, do diretor, costumam ser associados ao cinema do sueco Ingmar Bergman. Nesse grupo estão, em especial, Interiores (1978), Setembro (1987) e A outra (1988). Mas, no caso de Setembro, a conexão mais forte se dá com a dramaturgia do russo Anton Tchekhov.

Bem distante da cosmopolita Manhattan, o diretor confina seus personagens numa casa, em Vermont, e acirra os conflitos à medida que a projeção avança. O embate central ocorre entre a frágil Lane (Mia Farrow) e sua mãe, a enérgica Diane (Elaine Stritch), tanto por causa do choque de personalidades quanto de uma tragédia do passado (Allen se inspirou em acontecimento da vida da atriz Lana Turner). As diferenças radicais entre ambas remetem à diva temperamental Arkadina e seu filho, o inseguro Treplev, figuras de A gaivota, de Tchekhov. A vaidade de Arkadina é personificada por Diane que, em determinado momento, afirma: “É horrível envelhecer. Principalmente quando você se sente com 21 anos. Você olha o seu rosto no espelho. Percebe que tem algo faltando. E, então, vê que é o futuro”.

O elo com Tchekhov está presente, inclusive, na abordagem do tempo. Em seus textos, o dramaturgo capta fragmentos importantes de algumas vidas (não por acaso, a maioria dos personagens está em constante movimento, chegando e partindo). Não tem a ambição de mostrá-las em suas totalidades. O próprio título deste filme aponta para a incompletude, para a falta de acesso do espectador à integridade das jornadas de cada um, a julgar pela fala de Stephanie (Dianne Wiest) nos minutos finais: “Logo será setembro”. O público não verá os personagens em setembro. Mas suas existências continuam além das bordas das peças de Tchekhov e do filme de Allen.

Há mais Tchekhov em Setembro. A caracterização destituída de glamour e a máscara sofredora de Lane também evocam a Sonia de Tio Vanya. Esse texto vem à tona em circunstâncias destacadas durante o filme. Lane ama Peter (Sam Waterston), que, por sua vez, é apaixonado por Stephanie. É uma situação parecida com a enfrentada por Sonia, apaixonada pelo médico Astrov, que, porém, deseja estabelecer uma relação amorosa com Helena – casada, assim como Stephanie. Outra proximidade: no filme, Diane diz a Lane que pretende morar na casa no instante em que a segunda está recebendo possíveis compradores; na peça, o professor Serebriakov informa que planeja vender a propriedade onde Vanya e Sonia residem e trabalham. A reação de Vanya é passional. Para completar, a catarse emocional de Lane, que pega diversos comprimidos e é repreendida por Stephanie, bate na tela como passagem similar à de Vanya tomando posse de um frasco de morfina de Astrov.

A suavidade com que a câmera transita pelos ambientes da casa (fotografia de Carlo Di Palma), ambiente único desse trabalho intimista, contrasta com o tumulto que marcou as filmagens. Allen não gostou da primeira versão e decidiu refilmar trocando parte do elenco – Maureen O’Sullivan foi substituída por Stritch e o papel de Peter passou por Sam Shepard e Christopher Walken antes cair nas mãos de Waterston. O resultado nas bilheterias não foi expressivo, fazendo desse filme um dos menos mencionados da carreira de Allen. Setembro, contudo, merecia ser mais valorizado em meio à obra do cineasta, que extrai ótimas interpretações dos atores e imprime oportuna atmosfera outonal, crepuscular.



 

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