Um aviso honesto: este crítico não leu a “graphic novel” de Frank Miller que serviu de inspiração para o filme “300”. Portanto, aos fãs de Miller que esperam uma comparação, ou que acham que sem acesso prévio aos quadrinhos qualquer tipo de análise se torna inválida, peço desculpas e sugiro que poupem seu tempo interrompendo a leitura por aqui.
Aos que permaneceram, muito obrigado. A crítica começa a seguir.
CAMINHOS PERIGOSOS
Adaptar quadrinhos para o cinema é uma chance de ouro que os diretores hollywoodianos têm para se livrarem das amarras estéticas impostas pelo mercado e mostrarem talento autoral. Sam Raimi fez isso bem com os planos quadrinescos de Homem-Aranha, David Cronenberg idem com Marcas da Violência, mas talvez poucos tenham sido tão ousados quanto Robert Rodriguez e Frank Miller em Sin City, filmando de forma quase literal a HQ de Miller, com os atores contracenando em cenários criados por computador. O resultado visual instigante só não conseguia esconder a fragilidade dramática da violentíssima história de inspiração noir.
300, dirigido por Zack Snyder, é igualmente violento e ousado esteticamente. Desta vez, os cenários e efeitos criados em computador são grandiosos, épicos, nos levando a imaginar o que não aprontaria Cecil B De Mille se fosse vivo. Amparado pela liberdade anti-naturalista que o universo dos quadrinhos lhe confere, Snyder pôde experimentar na forma, com o tratamento de cor diferenciado, tomadas ousadas e elipses criativas na montagem.
A exemplo de Sin City, o problema está no conteúdo. Se no outro a parafernália visual ilustrava um roteiro tolo e vazio, aqui o roteiro não é apenas tolo, vazio e lotado de clichês, como também envereda por um perigoso caminho onde a fantasia da ficção e a realidade histórica podem se confundir, dando margem a leituras de cunho fascista. A intenção pode não ser tão clara quanto nos repugnantes filmes de Mel Gibson (Apocalypto e A Paixão de Cristo), um sujeito que não tem sutileza nem para disfarçar sua mentalidade nefanda. Mas o que dizer de uma sociedade ariana que elimina crianças nascidas com deformidades, trata os povos diferentes como raças inferiores e cultua o ódio como instrumento de força e poder? Esse é o retrato dos espartanos oferecido por 300, em que tudo parece justificado por sua bravura e heroísmo.
De um lado os bravos saradões másculos, de discurso machista e pose gay. De outro os afetados persas, com Rodrigo Santoro fantasiado de drag-queen e falando como Darth Vader (sua voz foi manipulada no computador para ficar gutural), mais gay do que o travesti que encarnava em Carandiru. E entre eles um corcunda de Notre Dame, ou melhor, de Esparta, que depois de viver isolado tenta se integrar ao exército de Leônidas, numa situação clichê que antevê um desfecho mais clichê ainda para o filme.
“Retroceder nunca, render-se jamais” era o título de um filme do troglodita Jean-Claude Van Damme, mas se encaixa como uma luva em 300, que tem muitos aspectos dos filmes de Van Damme, embora pareçam tão diferentes. A cultura de Macho com M maiúsculo precisa se impor a todo instante, como na deslocadíssima cena de sexo entre Leônidas e a rainha antes dele partir pra batalha. E o que dizer da canastrice do ator Gerard Butler? Seu modo de recitar os diálogos deixa a impressão de que acabou de sair do dentista e o efeito da anestesia ainda não passou.
Lá pelas tantas, depois de tantos membros dilacerados e cabeças arrancadas, se repetindo numa espiral de violência que parece não ter fim, o espectador entediado se pergunta para que serve um filme como 300. Se disseminar o ódio e a violência sob o manto da bravura é “a maior diversão”, daqui a pouco não vai sobrar ninguém pra contar a História. Nem de Esparta, nem a nossa.
# 300
EUA, 2007
Direção: ZACK SNYDER
Roteiro: ZACK SNYDER, KURT JOHNSTAD E MICHAEL GORDON, baseados na graphic novel de FRANK MILLER e LYNN VARLEY
Produção: MARK CANTON, BERNIE GOLDMANN, GIANNI NUNNARI e JEFFREY SILVER
Fotografia: LARRY FONG
Edição: WILLIAM HOY
Música: TYLER BATES
Elenco: GERARD BUTLER, RODRIGO SANTORO, LENA HEADEY, DOMINIC WEST
Duração: 117 min.
site: http://300themovie.warnerbros.com/