Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: O DORMINHOCO (1973)

25.01.2020
Por Ana Rodrigues
Obra hilária e crítica sobre um futuro ditatorial

O início da década de 1970 exibia, no cinema americano, a vitalidade da Nova Hollywood, movimento que rompeu com a censura e os padrões dos grandes estúdios. Solo fértil para o jovem ator e diretor Woody Allen. A obra que exibiu o primeiro sinal de que estávamos diante de um dos mais talentosos diretores do cinema de autor de todos os tempos foi uma comédia. Quarto filme escrito e dirigido por Allen, O dorminhoco (no original, Sleeper), de 1973, constrói uma obra cinematográfica muito bem elaborada esteticamente para brincar com a temática futurista e evocar temas contemporâneos, como Estados ditatoriais, sexualidade e consumo.

Miles Monroe entrou num hospital para ser submetido a uma cirurgia em 1973 e acordou, duzentos anos depois, descongelado. Para fugir do Estado policial que tomou conta da América, ele se disfarça de robô. Inicialmente pensado por ele e pelo parceiro de roteiro Marshall Brickman para ser um filme mudo, eles percebem que os diálogos afiados poderiam revezar com a comédia física e criar uma atmosfera satírica sobre os costumes.

Miles foge do hospital e começa a ser perseguido pelos agentes da Ditadura. No disfarce de robô com que serve como mordomo na casa de uma burguesa, ele encontra o refúgio imediato. A socialite Luna Schlosser é interpretada por Diane Keaton e ali seria consolidada uma das melhores parcerias do cinema. Na observação do comportamento social e sexual do ano 2173, Allen aproveita para alfinetar seu próprio tempo. Nas futilidades dos amigos de Luna e na visão material de uma sociedade desconectada da realidade. No “futuro”, a elite usa o “Orgasmatron”, uma máquina para fazer sexo. Algumas frases são de grande habilidade cômica. Um exemplo: “Acho que deveríamos ter feito sexo, mas não havia pessoas suficientes”. E a clássica comparação: “Sexo e morte, duas coisas que acontecem uma vez na vida... mas pelo menos após a morte, você não fica enjoado”. Esse trato do sexo como produto ou evento dos burgueses e a ironia de Miles de comparar sexo com morte exibe uma assinatura que acompanharia o diretor em muitos momentos da sua obra até os dias de hoje. O sexo, em especial, é um tema que Allen já havia explorado no filme anterior, Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar (1972).

A inventividade de Allen está em casar a visão futurista (ele consultou o escritor e cientista Isaac Asimov para saber a viabilidade de algumas ideias que estão no filme) com a comédia clássica, emulando recursos de atuação de Charles Chaplin, Buster Keaton e dos Irmãos Marx. Uma cena em especial exibe o talento do ator Woody Allen nessa habilidade. Luna pede para trocar a cabeça do robô, que está “muito estranho”. Sem qualquer diálogo, Woody exibe expressões hilárias de pânico com a possibilidade de perder a cabeça. Na sequência, uma fuga no laboratório com música do jazz tradicional de Nova Orleans e muito pastelão. Além disso, outra alfinetada do diretor está nos equipamentos e veículos tecnológicos ditatoriais, que não funcionam muito bem, no melhor estilo desenho do Papa-Léguas, ironizando os Estados burocratas.

O design de produção de O dorminhoco é um dos mais ousados da filmografia de Woody Allen. Com locações no estado do Colorado, a Casa Escultura, originalmente localizada em Denver, é um dos elementos mais simbólicos do filme e cenário para um dos momentos pastelão que marcaram a identidade da obra. Há ainda referências deliciosas a clássicos do cinema de terror sci-fi, como na cena do pudim (A bolha assassina, 1958), além de duas alusões a Stanley Kubrick: a cena de Miles comendo e sendo observado por dois médicos (Laranja mecânica, 1971) e o robô com inteligência e luz própria (2001, uma odisseia no espaço, 1968).

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